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Jornal da Unicamp

Os argonautas singram de Bali aos mangues de Vitória (1 notícias)

Publicado em 30 de agosto de 2004

Por ÁLVARO KASSAB
O que há de comum entre o ethos (o "estilo de ser") balinês e os caranguejeiras do município de Vitória, capital capixaba? De um lado, as pranchas seminais legadas pelo casal Margaret Mead e Gregory Bateson. De outro, o movimento da maré, canoas, galhos retorcidos, ilhéus cobertos de lama, as luas, a floresta dilacerada. Esses universos díspares mas unidos pelo que se convencionou denominar de originário, interpenetram-se no livro "Os Argonautas do Mangue", do biólogo e fotógrafo André Alves, cuja introdução, "Balinese character (re)visitado", de autoria do antropólogo e professor Etienne Samain, docente do recém-implantado Departamento de Cinema da Unicamp, projeta o fio condutor que transforma os dois trabalhos numa obra única: a antropologia visual. O livro, que acaba de ser lançado pela Editora da Unicamp, com co-edição da Imprensa Oficial, sela uma parceria iniciada em 1995 com a dissertação de mestrado de Alves sobre o tema. A orientá-lo, Samain, um apaixonado pela fotografia que sempre acalentou o sonho de materializar em livro as ideias do trabalho levado a cabo pela dupla Bateson-Mead, no livro "Balinese character. A photographic analysis" (1942), para ele uma pesquisa "fundante" da antropologia visual. Durante três anos, com efeito, entre 1936 e 1939, ambos, recém-casados, desenvolveram um trabalho de campo na ilha do arquipélago banhado pelo Índico, que mudaria os rumos de uma antropologia, não apenas legitimada a partir da escrita e, sim, enriquecida pelo "trabalho" das imagens. Na apresentação do livro, Samain dimensiona a importância dessa investigação no conjunto de "Argonautas". "A primeira contribuição mergulha - explorando-o - no trabalho pioneiro realizado em Bali por esses dois gigantes da antropologia, quando procuravam, no duplo registro do verbal e do visual, entender e retratar a maneira como uma criança, nascida na pequena ilha vulcânica, ao incorporar condutas e comportamentos socialmente transmitidos, tornava-se para sempre inconfundível ser balinês". Suporte - O mergulho, no caso, foi fato pelo próprio docente. Nas primeiras 72 páginas do livro, Samain não só contextualiza o período no qual surgiu o trabalho pioneiro de Meade Bateson, como explica o que este significou para a antropologia contemporânea. O professor detalha, com agudeza, o substrato teórico da dupla de pesquisadores, e faz, nesse âmbito, três "exercícios apreciativos, no que diz respeito às relações entre as potencialidades do suporte verbal e as potencialidades do suporto imagético, no quadro desse monumento da antropologia visual". Um suporte, cabe registrar, erigido sobre 25 mil registros fotográficos, além do material cinematográfico - nada menos que sete quilômetros de filmes de 16 mm. Essa metodologia muito pouca estudada e jamais sistematicamente aplicada a outro objeto de pesquisa, de acordo com Samain, vai ser retomada por André Alves na segunda parte do livro. O ineditismo, já presente na abordagem do docente, migra para o trabalho de campo feito com os caranguejeiras dos manguezais de Vitória. A pesquisa não permanece apenas antropológica e visual. Ela traz, ainda, um componente novo: a interação vivida com os próprios caranguejeiros. "Talvez seja a grande novidade em relação ao trabalho fundador. Em Bali, Bateson e Mead tinham hipóteses de trabalho e estavam recolhendo elementos que iam favorecer a 'revelação' de tais intuitos. André faz tudo isso mas submete todo esse trabalho aos próprios caranguejeiras. Muitos dos comentários revisitados foram feitos com as palavras deles. Em todo o trabalho há uma simbiose entre o pesquisador e os nativos", afirma Etienne. De fato, os três capítulos de "Os Argonautas do Mangue" são reveladores de uma tarefa marcada pela minúcia, pelo rigor e pelo contato sistemático com as fontes. Na primeira parte, Alves volta no tempo de uma memória coletiva para mostrar a ocupação dos manguezais de Vitória e, consequentemente, sua gradativa deterioração. Estão lá mapas antigos, aterros, palafitas, depósitos de lixo, a invasão urbana desenfreada, o esgoto que segue sendo despejado sobre as franjas do ecossistema. O leitor fica sabendo, por meio do texto e de análise iconográfica, que a destruição dos mangues da baia de Vitória, iniciada na verdade com a colonização portuguesa, intensificou-se nas últimas três décadas, quando boa parte das florestas foi aterrada. No segundo capítulo, denominado "Uma etnografia visual", o autor desnuda o universo cotidiano dos caranguejeiros - desde o caminho para o manguezal, as embarcações usadas, a classificação das marés, os tipos e o ciclo de vida dos crustáceos e as técnicas de captura, até chegar nos aspectos mercadológicos. Pranchas fotográficas e comentários precisos ilustram e definem esta parte central do livro. Com a palavra, Alves: "No decorrer do trabalho, fui percebendo que, por trás de cada técnica, de cada atitude, existia um significado. Tentei, então, mergulhar nesse mar de significados, entender o que representa, para os caranguejeiras, ser caranguejeira e viver da cata dos caranguejos. O que percebi a partir desse momento foi algo bem diferente da visão romântica que possuía. No meu imaginário, os caranguejeiras eram homens que viviam em perfeita harmonia com a natureza. No entanto, percebe-se que, na verdade, são homens que buscam, acima de tudo, sobreviverem uma sociedade que tende cada vez mais a excluí-los". Para chegar ao resultado final, poético, diga-se, além de entrevistas, depoimentos e questionários, Alves reuniu um vasto acervo audiovisual sobre seu objeto de pesquisa. No campo da fotografia, por exemplo, foram produzidas 3.600 imagens em preto-e-branco e outras 2 mil em cores. Entra aí, de acordo com o autor do livro e com o professor Etienne, a retomada do modelo metodológico proposto por Margaret Mead e Gregory Bateson em "Balinese character". "Ele oferecia um duplo percurso heurístico. Um primeiro, mais amplo, em que se busca, através de 'descrições', situar o leitor no contexto geral dos assuntos enfocados. O segundo, mais específico, em que se procura, através de uma interação entre texto e imagem, uma exposição detalhada dos fenômenos pesquisados", revela André Alves na introdução de seu trabalho. O que isto significa mais profundamente? O orientador da pesquisa responde: "Não conheço ainda muitos antropólogos que decidiram pensar no que uma imagem ou um conjunto de imagens, fixas ou em movimento, permitiria "construir" - com ou sem a presença de um texto -, em termos de uma compreensão mais aprofundada dos seres humanos e dos fatos da cultura. Com outras palavras, por que as imagens ficariam desprovidas de pensamento, quando, no entanto, creditamos, com razão, as palavras e nossas escritas de pensamento? Na opinião do docente, palavras, escritas, imagens são "formas" inteligentes, singulares e complementares de que dispomos para representar as "representações" de uma impossível 'realidade'. As imagens têm, deste modo, a capacidade - também - de produzir reflexões no que diz respeito ao mundo. Não somente as imagens são boas para pensar; elas são ainda 'formas que pensam'. Devemos fazer confiança às imagens". Imaginário - Etienne lembra que um exemplo emblemático dessa proposta é o terceiro capítulo do livro, intitulado "Narrativa Visual", no qual irrompem exatas 24 imagens sem legendas ou textos de apoio. "O leitor vai ter de refazer a sua própria viagem. É mais uma audácia de acreditar na antropologia visual. Claro que a imagem sozinha é polifórmica, fala muito, não é preciso colocar camisa-de-força. Elas despertam o imaginário do leitor, que é sempre bem-vindo nesse mundo de racionalidade. As imagens nos oferecem toda uma mensagem que não é só antropológica, mas também poética, de apelo estético". Samain destaca outros dois fatores no conjunto da obra. O primeiro diz respeito à confecção do livro. "Um docente é uma pessoa que está apenas de passagem. Digo isso sem romantismo. A obra de André é um trabalho no qual também mergulhei, mas existiu sempre uma reciprocidade, o que considero fundamental". O segundo ponto ressaltado está relacionado aos frutos que poderão ser colhidos. "Este trabalho foi feito para a comunidade e vai retornar para a comunidade. Para despertá-la, não apenas para aglutiná-la. Vai criar também uma consciência um pouco mais crítica, sobretudo no campo da ecologia. Para os habitantes de Vitória, o trabalho de André será um grande registro de memória". Teólogo e antropólogo, Etienne Samain (foto) nasceu na Bélgica, em 1938, e está no Brasil desde março de 1973. Conviveu com os índios Kamayurá (Alto Xingu, MT) e com os Urubu-Kaapor (Maranhão), estudando a mitologia dessas comunidades de língua tupi. Sobre esse assunto, publicou pela Lidador (Rio, 1991), "Moroneta Kamayurá. Mitos e aspectos da realidade social dos índios Kamayurá (Alto Xingu)". Desde 1984, pertence ao corpo docente do Instituto de Artes, integrando atualmente o recém-criado Departamento de Cinema. Desenvolve pesquisas sobre o uso das imagens no campo das ciências humanas e explora questões relativas à epistemologia da comunicação, na linha aberta por Gregory Bateson e pela Escola de Paio Alto. Com licenciaturas em Teologia (Lovaina), em Filologia Bíblica (Lovaina) e em Filosofia (PUC-Rio), Etienne Samain é doutor em Ciências Teológicas e Religiosas (Lovaina) e mestre em Antropologia Social (Museu Nacional. UFRJ). Realizou, em 1991-1992, pós-doutorado, no Instituto Mediterrâneo de Pesquisa e de Criação de Marselha. Organizou, em 1998, os trabalhos de 26 profissionais em tomo da fotografia, publicando, com apoio do CNPq, "O fotográfico". SERVIÇO Livro: Os Argonautas do Mangue, de André Alves - Precedido de Balinese character (re)visitado por Etienne Samain Editora da Unicamp (co-edição da Imprensa Oficial do Estado) Preço: R$ 50,00 Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp); Prefeitura de Vitória; Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST); Faculdades Integradas espírito-santense (Faesa); Lei Rubem Braga; e Companhia Vale do Rio Doce (CVRD)