No final dos anos 1950, um repórter da revista "O Cruzeiro" fazia um artigo sobre a Favela do Canindé, em São Paulo, quando conheceu uma catadora de papel que vivia em um dos barracos com três filhos pequenos. Chamava-se Carolina Maria de Jesus e escrevia romances, poesia e memórias nos cadernos que encontrava no lixo.
O repórter Audálio Dantas pediu para ver as brochuras e animou-se em publicar principalmente os diários de Carolina, onde ela escrevia sobre a vida na favela, em trechos corrosivos como o final do dia 24 de julho de 1955: "Como é horrível levantar de manhã e não ter nada pra comer. Pensei até em me suicidar. Eu me suicidando é pôr fim à deficiência de alimentação do meu estômago. E por infelicidade eu amanheci com fome. Os meninos ganharam uns pães duros, mas estavam 'recheiados' de pernas de baratas. Joguei fora e tomamos café. Botei o feijão pra cozinhar".
"Quarto de despejo: diário de uma favelada" foi publicado em 1960 e tornou-se um sucesso editorial, vendendo dez mil exemplares só nos três primeiros dias de lançamento.
Carolina foi traduzida para 14 idiomas, vendida em 40 países, viajou por todo o Brasil para eventos literários. Aclamada por escritores ilustres, gravou um disco com canções de sua autoria.
Mas os livros seguintes não tiveram tanto êxito comercial e até hoje são difíceis de encontrar. E a trajetória de Carolina Maria foi repetida na história literária brasileira como obra do acaso - uma flor rara nascida no lixão, uma exceção voluntariosa da carência.
Origens
Na última terça-feira (13), dia do aniversário da escritora (1914-1977), o evento comemorativo "Carolina de Jesus: uma voz soberana", na sede do Instituto Moreira Salles (IMS), mostrou ao público que a história não foi exatamente assim.
Depois da exibição do filme "Favela: a vida na pobreza", da alemã Christa Gottman - fita de 1971 impedida de ser exibida à época no Brasil, por mostrar a miséria do Canindé, sendo restaurada pelo IMS em 2014 -, houve uma palestra da historiadora da USP e pós-doutora em Literatura pela Universidade de Boston Elena Pajaro Peres, especialista na obra de Carolina, que foi a primeira pesquisadora a levantar as raízes da autora.
"A literatura de Carolina foi ofuscada pela questão social. Para compreender a autora, é preciso se afastar do "Quarto de despejo", e mergulhar na sua trajetória para entendê-la como artista. Deslocar o foco para o seu percurso criativo", explica Elena, que com apoio da Fapesp foi buscar rastros de Carolina na cidadezinha de Sacramento, no sudoeste de Minas, como trabalho do seu pós-doutorado.
Foi lá que Carolina nasceu, em uma família de ex-escravos oriundos da África Central. "Acho importante destacar essa linhagem afro-diaspórica que não estava contada. Carolina nasceu num ambiente de tradição oral muito forte. Havia um homem citado em suas memórias, um oficial da Marinha, que lia os jornais do dia em voz alta para os negros que não sabiam ler na cidade, em praça pública. Foi com ele que Carolina começou a exercitar seu pensamento crítico", explica Elena.
"Ela era tão curiosa que aprendeu a ler sozinha e estudou por dois anos numa escola destacada, o Colégio Espírita Allan Kardec, hoje um centro espírita", completa.
A pesquisadora prossegue: "A Congada, festa em homenagem à Nossa Senhora do Rosário, do grupo afro-católico daquela região de Minas Gerais, foi muito importante para a construção do imaginário da escritora. Portanto, Carolina não é um milagre surgido por acaso no lixo, autora de um relato testemunhal apenas. Sua obra não parte da carência. Ela já escrevia desde criança, e já tinha muitas poesias e romances prontos quando o Audálio a conheceu e se interessou por seus diários".
Interesse
A história não estava esclarecida, lembra Elena Pajaro, porque faltava interesse em pesquisá-la. O que aumentou bastante quando do centenário da autora, celebrado em 2014. Com a efeméride, sua obra foi mais divulgada no Brasil, e hoje há dissertações e teses brotando em universidades como USP, Unicamp, UFMG e faculdades americanas.
"Há uma figura que Carolina destaca muito em suas memórias, o avô Benedito, que reforça o elo que ela tinha com sua linhagem africana, ainda em Sacramento, antes de ir embora para São Paulo e passar pelas dificuldades que relata em 'Quarto de despejo'. Ele era o 'ancestral'. Desde menina, o que ela queria era publicar os romances, os contos, as peças de teatro, nunca teve a intenção de transformar as memórias em livros", pontua a pesquisadora.
"O primeiro livro que leu, uma vizinha emprestou, 'A escrava Isaura'. Também lia Camões, folhetins, poetas românticos brasileiros. Seus romances, como 'Pedaço de fome', hoje raríssimo em sebos, mostram essa influência. É absolutamente romântico", enfatiza Elena, lembrando que há muito material de Carolina ainda não publicado.
"Há documentos no próprio acervo do IMS, que tem dois cadernos dela (desde 2006), mas há também manuscritos em Sacramento, na Biblioteca Nacional e até na Biblioteca do Congresso Americano. Há muito a ser descoberto sobre Carolina ainda".
O interesse internacional pela obra de Carolina chama a atenção. Sucesso principalmente nos EUA, onde "Quarto de despejo' é lido em escolas até hoje, Carolina teve o livro 'Diários de Bitita" publicado primeiramente na França, em 1982, na Espanha, em 1984, e só depois no Brasil, em 1986.
"Numa palestra que dei na Alemanha, um editor me procurou ao final, interessadíssimo em publicá-la. Carolina foi uma lavradora, contista, romancista, cozinheira, sambista, empregada doméstica, poeta. Para ela, a literatura não era uma opção, era uma condição de vida".