Agência FAPESP
Um grupo de pesquisadores brasileiros conseguiu dar um passo à frente para entender como determinadas enzimas podem adquirir bioluminescência, ou a emissão de luz visível por organismos vivos.
O estudo, coordenado por Vadim Viviani, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em Sorocaba, partiu da clonagem de enzimas do tipo luciferases – que catalisam a oxidação da luciferina, pigmento responsável pela bioluminescência de animais como o vaga-lume – a fim de identificar os aminoácidos e as partes da estrutura das enzimas responsáveis pela produção de luz.
Para entender como as luciferases se tornaram bioluminescentes no decorrer da evolução, os cientistas compararam as enzimas clonadas com uma proteína semelhante, mas fracamente bioluminescente: a AMP-ligase, uma enzima presente em todos os organismos, que desempenha variadas funções metabólicas.
Os resultados da pesquisa foram publicados na revista Photochemical & Photobiological Sciences, em artigo que aborda o processo de clonagem e traz informações inéditas sobre a estrutura e funções dessas enzimas luminescentes. A pesquisadora Rogilene Prado, orientanda de doutorado de Viviani, está desenvolvendo parte do projeto.
De acordo com Viviani, que também é professor do Departamento de Genética e Evolução da UFSCar, esse é o primeiro passo para entender como as AMP-ligases podem adquirir a propriedade de produzir luz. Segundo ele, em um futuro próximo, esse tipo de informação pode ajudar a tornar as enzimas que já produzem mais eficientes e, eventualmente, tornar enzimas que não produzem luz em luminescentes.
“Os resultados são um importante passo para entender como um grupo de enzimas pode se tornar bioluminescente. Mas estamos olhando para a frente. Para tornar outras enzimas bioluminescentes, haverá necessidade de mais estudos”, disse Viviani à Agência FAPESP.
A pesquisa, que integra um projeto financiado pela FAPESP na modalidade Auxílio a Pesquisa, no âmbito do Programa Biota-FAPESP, foi desenvolvida na UFSCar e na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. De acordo com Viviani, no estudo inicial o grupo tentava descobrir como as luciferases se originaram durante sua evolução.
“Queríamos saber como as luciferases se originaram e que tipos de enzimas evoluíram. É sabido já há dez ou 15 anos que elas evoluíram a partir de AMP-ligases, que são um grupo muito diverso de enzimas que ocorrem em todos os organismos. Mas a questão que sempre ficou é a seguinte: como essas enzimas, que possuem diferentes funções metabólicas, adquiriram em determinado momento a capacidade de produzir luz fria como os vaga-lumes? Este tem sido um dos principais focos da nossa pesquisa ao longo de vários anos”, explicou o pesquisador.
Segundo Viviani, várias dessas enzimas já haviam sido clonadas nos últimos 15 anos, inclusive por seu próprio grupo. Entretanto, faltava saber como enzimas bioluminescentes – como as luciferases – adquiriram a função bioluminescente no decorrer da evolução.
Em 1996, o grupo de pesquisa descobriu que insetos não-luminescentes têm enzimas com a capacidade de produzir luz, como as luciferases. Mas trata-se de uma luz muito fraca, que só pode ser detectada com equipamentos especiais. “Por muitos anos não tivemos condição de isolar e clonar essas enzimas. Ficamos vários anos tentando”, contou.
Outros grupos no Japão, Estados Unidos e Inglaterra, principalmente, também tentaram a clonagem, segundo o pesquisador. “Se conseguirmos entender como uma enzima adquire uma determinada função, isso nos dará uma ideia geral de como as enzimas evoluem durante o tempo e adquirem novas funções biológicas. Mas neste nosso caso específico essa compreensão nos dá uma importante informação sobre como enzimas que não produzem luz podem começar a produzir”, enfatiza.
Em 2008, o grupo da UFScar conseguiu isolar e clonar enzimas do tipo luciferases com baixa capacidade de emissão de luz, utilizando câmaras de fotodetecção ultrassensíveis da Universidade de Harvard. Segundo Viviani, o processo de clonagem foi feito no Brasil, mas o isolamento foi realizado nos Estados Unidos.
Existe uma gama de aplicações biotecnológicas com luciferases e enzimas fluorescentes para se detectar processos biológicos e patológicos em organismos – inclusive no ser humano – para os estudos de câncer e infecções bacterianas, por exemplo.
“Ainda neste momento não é possível se fazer testes em seres humanos, por questões éticas. Mas em modelos animais é possível estudar patologias e processos biológicos importantes até descobrir novas formas de tratamento e terapias, como está sendo feito pela indústria farmacêutica, utilizando esses sistemas bioluminescentes com essa finalidade”, explica.
Viviani afirma que, quando se consegue melhorar essa propriedade de produzir luz ou até, eventualmente, colocar essa propriedade numa enzima que não tem essa capacidade, pode-se ampliar muito os horizontes de aplicação.
Segundo Viviani, o grupo está agora tentando levantar dados conclusivos sobre a função biológica dessa enzima. “Já temos evidências de que ela funcione em detoxificação de ácidos carboxílicos tóxicos, porque é encontrada em uma estrutura de excreção dos túbulos de Malpighi dos insetos, que são como os rins nos seres humanos, funcionam na excreção de várias substâncias tóxicas. O que na verdade foi mostrado é que essas enzimas que descobrimos, com capacidade de bioluminescência fraca, funcionam provavelmente na detoxificação desses compostos tóxicos”, aponta.
Segundo ele, outra linha de frente da pesquisa em desenvolvimento está tentando fazer a mutagênese em determinados aminoácidos para ver se é possível recuperar a atividade bioluminescente total da enzima. “Isso vai dar a informação-chave do que realmente a enzima precisa para ser bioluminescente. São as duas vias principais que estamos tomando com o estudo dessa enzima descoberta”, explica.
O professor ressalta a importância da parceria com a Universidade de Sorocaba (Uniso), cujo Departamento de Biotecnologia tem um convênio com a UFSCar para o projeto. “A Uniso nos cedeu o laboratório e tem participação nessa descoberta”, disse.
“Esse trabalho é fruto de vários anos de pesquisa básica e depois de alguns anos temos tanto conhecimento sobre o funcionamento dessas enzimas que já começamos a poder aplicá-las e melhorá-las. Isso não seria possível sem tantos anos de investimentos da FAPESP nesse nível de pesquisa básica”, destacou Viviani.
O artigo An ancestral luciferase in the Malpighi tubules of a non-bioluminescent beetle, de Vadim Viviani e outros, pode ser lido por assinantes da Photochemical & Photobiological Sciences em www.rsc.org/publishing/journals/PP.