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Organizações: a discriminação invisível (1 notícias)

Publicado em 21 de setembro de 2012

Por Renato Ladeia

Este artigo discute a questão da discriminação nas organizações com relação aos afrodescendentes através de mecanismos quase invisíveis que dificultam o acesso e a mobilidade funcional. A pesquisa foi delineada a partir de uma amostragem por conveniência, utilizando a história de vida de profission

1. Introdução

A temática desse artigo está direcionada para processo seletivo de pessoas nas empresas, atividade inerente ao setor de Recursos Humanos e que trata do recrutamento, triagem e avaliação de candidatos para os seus quadros funcionais. Os profissionais que atuam nesta área têm, a rigor, um poder limitado na aprovação dos candidatos às oportunidades de emprego oferecidas pelas empresas, pois seu papel é limitado na aprovação de candidatos às oportunidades de emprego oferecidas pelas empresas, pois se restringe, em geral, a indicação do melhor ou dos melhores profissionais para o preenchimento das vagas disponíveis. Essa atividade está dividida em duas etapas principais: Recrutamento, como uma série de atividades que trata dos estudos e contatos com o mercado de trabalho, assim como da primeira convocação de candidatos (Toledo, 1992). A seleção propriamente dita, já se refere a um processo, normalmente, mais complexo, onde são envolvidas tecnologias psicológicas como baterias de testes, entrevistas, dinâmicas de grupo, dramatização etc. Toledo (1992, p.67), explica que "é preciso ter sempre em mente que a boa seleção visa unir um indivíduo a uma função, e que, assim sendo, é preciso conhecer profundamente não só o indivíduo como também a função, sem isso não teremos o verdadeiro ajustamento". A expressão "conhecer profundamente a função" envolve, não são somente os aspectos funcionais, técnicos, mas também com quem o funcionário vai trabalhar. Ao unir o indivíduo a uma função, o selecionador deverá ter em mente que está realizando um trabalho eficiente, adequando o indivíduo as características do chefe e da equipe. Assim, esse profissional é um técno-burocrata, que precisa ser preciso, rápido, discreto e eficiente (Weber, 2004). Portanto, o desafio principal do recrutamento é agregar valor à organização e às pessoas (CHIAVENATO, 1999). Dessa forma, um funcionário não adequado à empresa (ou ao chefe), não estaria agregando valor. Chiavenato, um conhecido e difundido autor de manuais sobre Recursos Humanos e habitualmente adotado em escolas de Administração de Empresas relata as razões pelas quais algumas pessoas são preteridas ou não para vagas nas empresas:

Acontece que a variabilidade humana é enorme: as diferenças individuais entre as pessoas, tanto no plano físico (como estatura, peso, compleição física, força, acuidade visual e auditiva, resistência à fadiga etc.), como no plano psicológico (como temperamento, caráter, inteligência, aptidões, habilidades mentais etc.) levam as pessoas a se comportar diferentemente, a perceber situações de maneira diferente e a se desempenhar diferentemente, com maior ou menor sucesso, nas organizações (1999, p.107).

As chamadas diferenças individuais mencionadas pelo autor não mencionam a cor, diferentemente do que ocorria até meados dos anos 40 nos anúncios de emprego publicados no país de acordo com Damasceno (2000), quando essa característica fenotípica era explicitada. Entretanto o processo seletivo dispõe de um enorme arsenal de elementos que podem dificultar o acesso de pessoas às organizações sem a necessidade de exposição de comportamentos discriminadores. Num outro momento, o autor afirma que "a seleção passa a ser configurada basicamente como um processo de comparação e de decisão" (CHIAVENATO, 1999, p.107). Portanto, a objetividade dos processos seletivos pode ficar na dependência, única e exclusiva, dos profissionais que estão à frente dessas funções nas organizações, pois elas podem dispor de inúmeros mecanismos subjetivos fundado numa ideologia racionalista para formular a recusa de um profissional por preconceitos ou discriminação.

2. Questões Teóricas

A utilização do conceito de raça é relativamente recente na cultura ocidental, pois seu significado original estava mais ligado a um grupo de pessoas interligadas por uma origem comum, conforme afirma Banton (1994, p.264) e não para se referir a populações com características fenotípicas diferenciadas. De qualquer forma, já é patente no âmbito das ciências sociais, notadamente na antropologia, que biologicamente o conceito de raça não existe no sentido em que é utilizado, sendo o termo irrelevante para a ciência. Admite-se, no entanto, que a expressão tem um interesse maior no campo sociológico do que na biologia ou na antropologia física, sendo por isso considerado como uma construção social, engendrada a partir das relações sociais numa realidade concreta (BERGER &LUCKMANN, 2006). Neste sentido, raça pode ser também entendida como uma ideologia construída a partir de elementos da realidade, cujo objetivo é mascarar esta mesma realidade em função de interesses sociais, políticos e econômicos. Haney Lopez (1994), afirma que os conceitos de raça são totalmente ilusórios, como conceitos biológico e social. Assim não havendo nenhuma conexão entre aparência e raças, então a conexão não existe. Vários pesquisadores como Banton, 1975, Miles, 1982 e Rex 1986, têm demonstrado que raça é na biologia um conceito errôneo (ROCHA, 2001).

O pecado original da antropologia foi à confusão entre a noção puramente biológica de raça e as produções sociológicas e psicológicas das culturas humanas. Aliás, esta noção, mesmo pretendendo uma objetividade científica, foi amplamente contestada pela genética (LEVI-STRAUSS, 1978).

Para Lévi-Strauss (1978), a mente humana apesar das diferenças culturais entre as diversas frações da humanidade, é em toda a parte uma e a mesma coisa, com as mesmas capacidades. O que efetivamente diferencia os homens em suas várias etnias, grupos, tribos é o uso que se faz da mente para atender as suas necessidades cotidianas. Temos assim algumas habilidades desenvolvidas que atendem as demandas da vida moderna numa sociedade industrial e extremamente complexa. Por outro lado, numa sociedade tribal, são desenvolvidas algumas habilidades para as quais nos julgamos totalmente incapazes.

Para Boas (1995) os progressos da cultura dependem das oportunidades oferecidas a um dado grupo de aprender, da experiência dos seus vizinhos. As descobertas de um grupo se estendem a outros e, quanto mais variados são os contatos, maiores são as oportunidades de aprender.

Pode-se afirmar que o racismo já não pode se valer da ciência para se legitimar como doutrina. Ele estaria morto do ponto de vista genético e antropológico, mas a rejeição com relação ao outro persiste independentemente das provas científicas (PONTALIS, 1991).

Enfim, a questão da diversidade humana é extremamente complexa, envolvendo aspectos biológicos e, principalmente, sociológicos, antropológicos e psicológicos, tornando-se por isso, impossível o consenso a respeito do tema. A questão relevante, no entanto, é que a dificuldade de aceitar o outro, desemboca fatalmente no ódio, na intolerância e "trata-se, em primeiro lugar, da aparente incapacidade de se constituir como si mesmo, sem excluir o outro; em seguida, da aparente incapacidade de excluir o outro sem desvalorizá-lo, chegando, finalmente, a odiá-lo". Neste enfoque, o racismo pode ser visto como uma incapacidade humana em aceitar o diferente (CASTORIADES, 1992, p. 32).

3. Metodologia

A opção pela história de vida de profissionais que atuam ou atuaram por longo tempo na área de Recursos Humanos, em organizações nacionais e internacionais, tem, evidentemente, razões de natureza antropológica e sociológica, pois se busca não um conjunto de dados quantitativos para serem analisados e comparados, mas a riqueza da informação obtida através dos relatos de vivência de indivíduos, compartilhados ou não, por outros. "Pelo recurso à memória é possível também captar os sentimentos experimentados, pois a lembrança do acontecimento vivido faz com que aflorem o ódio, o amor, a alegria, a tristeza, o conformismo, a revolta" (BERNARDO, 1998).

A narrativa parte da experiência concreta, vivida e também daquela contada pelos outros. Essa forma artesanal da comunicação humana não tem a intenção de transmitir um conteúdo puro como a notícia. Pelo contrário, diz Benjamin (1975), "imerge essa substância na vida do narrador para, em seguida, retirá-la dele próprio".

Durante a vida profissional as pessoas vão acumulando memórias sobre fatos, conflitos, sucessos e fracassos. Essas memórias, de natureza individuais ou coletivas preservam vivências pessoais ou aquelas vividas pelo grupo a que a pessoa julga pertencer (POLLAK, 1999).

Para Halbwachs (2006), a experiência para ser real precisa ser vivida, construída na memória do indivíduo e quando essas lembranças são confrontadas por outros, aumenta a crença de que se está reconstruindo a própria experiência. Assim, a memória precisa ser colocada em um contexto grupal, do qual o indivíduo faz parte, supondo acontecimentos comuns, reais, vividos em comum. Daí a validade dessa experiência, pois ela foi compartilhada por outros e de certa forma também vivida pelo narrador ao sentir na pele aquilo que somente é contado por aqueles que foram vítimas.

Para este trabalho foram coletados os depoimentos de sete profissionais de Recursos Humanos, todos eles com mais de 30 anos de idade. Os cargos ocupados variam de Supervisor, Psicólogos, Gerente e Diretor. Os depoimentos foram tomados nas empresas e nas residências dos depoentes. Os relatos foram gravados com a autorização dos sujeitos que apenas solicitaram sigilo com relação aos seus nomes e das empresas nas quais trabalham ou trabalharam. A pequena amostra se justifica, não somente pela dificuldade em se obter esse tipo de depoimento, como também pelo fato de que o método da história de vida pode ser encerrado a partir do momento em que se obtêm a repetição constante das informações, indicando para o pesquisador inferir que um maior número de entrevistas não alterará os resultados (BERNARDO, 1992).

4. Discriminação nos processos seletivos: análise dos depoimentos

Os recortes dos depoimentos seguintes mostram o nível de subjetividade que permeia todo o processo em que as pessoas são selecionadas para serem contratadas pelas organizações privadas. No caso das organizações públicas os critérios de impessoalidade são muito mais efetivos, pois depende do desempenho dos candidatos nas provas escritas, e essas garantem para aqueles que obtiveram as melhores notas, o direito assegurado pela constituição de ingressar no serviço público ou numa empresa pública.

L.H.L., 39 anos, branca, psicóloga e Consultora de Recursos Humanos admite a existência de subjetividade ao afirmar que o preconceito depende das pessoas que estão entrevistando os candidatos e não da empresa em si, conforme relata: "Acho que depende muito de quem entrevista, de quem recebe as pessoas. Se a pessoa é preconceituosa, ela vai agir ali e nunca ninguém vai ficar sabendo. Eu acho muito difícil ocorrer, primeiro porque nenhuma organização vai ter essa política de não contratação de negros ou outras raças. Eu nunca vi isso dos requisitantes".

No seu depoimento L.H.L. deixou bem claro que não percebeu, em nenhuma situação de sua vida profissional, um só caso de preconceito ou discriminação contra pessoas negras desde 1985, quando começou a trabalhar como Psicóloga em seleção de pessoal. Seu discurso procura passar uma racionalidade profissional, onde os melhores, os mais aptos eram aprovados com base nos perfis estabelecidos pelas organizações (WEBER, 2004).

Na fala seguinte L.H.L. relativiza a questão com base na sua experiência, defendendo que algumas empresas nacionais praticam mais discriminação, citando o banco em que trabalha. "As multinacionais não são tão preconceituosas assim, dependendo do país onde elas se entram. Mas algumas empresas nacionais acabam tendo maior discriminação. Por exemplo, o banco em que trabalho. Um banco extremamente formal, que discrimina a idade, a aparência, mas nunca problemas de cor. Nunca um requisitante falou, assim, abertamente: não quero negro, não quero japonês, nunca aconteceu isso". (L.H.L.).

O exemplo do banco, que adota políticas discriminatórias em relação à idade e a aparência, pode ser um caso de camuflagem do preconceito. Não é difícil entender o significado de boa aparência, quando não são vistos gerentes ou atendentes negros. A boa aparência pode ser uma senha para o preconceito numa sociedade que há séculos pratica a discriminação. A metáfora da boa aparência, historicamente, passou a ser utilizada no final dos anos 40 (Damasceno, 2000), pois até então os anúncios de jornais destacavam a cor desejada nas contratações. Para as funções que havia invisibilidade a cor não era mencionada ou chega-se até a destacar a preferência por negros ou pardos. Entretanto, quando o empregado tinha uma função visível ou relacionamento direto com os superiores ou a família do contratante, a cor branca era preferida. A exigência da fotografia é outra forma, até hoje ainda utilizada por alguns anunciantes, pois evita o contato com candidatos considerados "diferentes" para as vagas. Assim, a combinação "da cor com a boa aparência vai aos poucos sendo substituída pela segunda não teriam vez, pois na visão racializada, as pessoas que mantêm contato direto com o público precisam ser claras e bonitas. A percepção estética de uma sociedade ideologicamente branca, sem necessariamente sê-lo é imposta hegemonicamente e quem estiver fora desse padrão, é considerado feio, portanto excluído (BASTIDE, 2008).

L.H.L. acredita que a legislação mais severa contra o racismo faz com que as pessoas sejam mais sutis, pois ninguém assume o seu racismo de forma explícita. Ela sugere que deve ter acontecido alguma vez de ter encaminhado vários candidatos e não serem aprovados por serem negros; mas realmente nunca sentiu que foi por causa da cor. "A coisa é meio implícita, como uma boa apresentação, nunca foi muito clara. O que eu percebo, é que existem realmente poucos negros trabalhando nas empresas. E depende também da área. Se for numa indústria nota-se bastante negros, mas na fábrica. Para cargos de assistentes também existem alguns negros, mas quando vai subindo o nível já vai diminuindo a contratação de negros". (L.H.L.).

M.I.G., 40 anos, economista e gerente de recursos humanos em um banco multinacional iniciou seu depoimento sendo taxativa quanto ao fato de nunca ter presenciado um caso discriminação nas empresas nas quais trabalhou. Mas acabou lembrando-se de uma história em que o próprio candidato cobrou uma definição da empresa quanto a sua posição frente à diversidade racial. Ele colocou a seguinte questão: "O banco é racista? Se for nem darei continuidade ao processo".

Esse caso também reflete a ausência evidente de políticas afirmativas dentro da organização com relação à discriminação. Ao desconhecer as políticas do Banco com relação ao tema, a depoente expôs as contradições existentes nas organizações ao lidarem com profissionais conscientes de sua condição e da existência de discriminação. Ao questioná-la, o candidato quis saber se valeria a pena concorrer numa situação em que as cartas estariam previamente definidas. Provavelmente, sua experiência de vida competindo com brancos num mercado bastante restrito, já lhe havia proporcionado uma visão de sua situação.

E.J.S, 50 anos, branco, Bacharel em Ciências Sociais, trabalhou toda sua vida numa empresa alemã, atuando como Supervisor do Departamento de Seleção e Treinamento. Ele relata várias situações vividas na empresa sobre as relações raciais. No seu caso, também, não aparecia de forma explícita a existência de racismo por parte da direção da empresa, constituída, em sua maioria, por alemães. Ele lembra que nos anos 70 um gerente recusava com freqüência a maioria dos candidatos encaminhados. Questionado ele respondeu: "Se o sujeito nasceu do Rio de Janeiro para cima, não manda o candidato para mim". Segundo o depoente, esse gerente tinha um imenso preconceito contra a mistura de raças, recusando além de candidatos negros, também os mestiços.

A história do depoente comprova que a decisão pelas contratações não era dele e de nada resolveria ignorar o gerente e continuar enviando candidatos negros, mestiços ou mesmo nordestinos que todos seriam reprovados. Ao cobrar uma definição do gerente, este assumiu o racismo de forma explícita. Como ele comandava uma área de grande importância para a empresa e gozava de muito prestígio e poder, a solução foi atendê-lo para evitar maiores problemas. A posição do narrador, evidentemente, foi tentar ser neutro, evitando dificuldades que pudessem ameaçar o seu emprego ou mesmo o bom desempenho de seu setor. Isso evidencia que "Ao longo da história, as organizações têm sido associadas a processos de dominação social nos quais os indivíduos ou grupos encontram formas de impor a respectiva vontade sobre os outros" (MORGAN, 1996, p. 281).

Outro aspecto interessante do depoimento de E.J.S. está relacionado também ao preconceito em relação aos nordestinos, quando ele diz: "Do Rio de Janeiro para cima não enviar candidato", "a discriminação em relação aos nordestinos, verificada em São Paulo, manifesta-se através de vários meios, contudo, o que mais sobressai é a linguagem" (ESTRELA, 2003, p.180). Na realidade ocorre um processo de racialização das relações, pois nem todos os nordestinos são negros ou mulatos. Nesse processo, converte-se o sentimento de racismo para outros grupos ou etnias, independentemente se são brancos ou não. Estrela (2003, p.81), afirma que a identidade social é um produto das representações, mantendo um estreito vínculo entre, por um lado, as condições para a construção das identidades e os elementos articulados nestas representações e, por outro lado, as condições de existência, a cultura e as relações sociais. Dessa forma, são atribuídas características estereotipadas para todos os nordestinos, criando-se para eles um tipo de identidade associada à pobreza, a ignorância, ao machismo, a violência etc. (ESTRELA, 2003).

Num outro momento E.J.S. cita um advogado negro, cujo currículo foi muito apreciado pelo mesmo diretor, pelo menos até o momento da entrevista. Como o candidato preenchia todos os requisitos da vaga, o diretor foi explícito e confessou que não ficaria bem um negro nesta posição. Ao exercer funções mais sofisticadas do que um simples serviçal, o negro nega em seu comportamento as representações que dele são feitas (CARDOSO, 2003), mas assumir uma posição em que seria não somente um igual, mas estaria entre aqueles mais iguais do que até outros (brancos), seria um acinte.

Para o narrador o diretor brasileiro de origem japonesa representava o papel que ele acreditava que os alemães queriam que o fizesse ou ele mesmo assumia, por sua conta, o possível racismo dos alemães no Brasil. Esse comportamento pode parecer estranho, pois os descendentes de japoneses sofrem discriminação no país, mesmo sendo mais sutil. É provável que o discriminado busque na discriminação do outro, a aceitação de si mesmo pelo grupo hegemônico. Esse fenômeno ocorre também com negros, que para serem aceitos pelos brancos, criticam o comportamento dos demais negros como se não fosse um deles. Os nipo-brasileiros, na realidade, apesar de serem chamados de japoneses, mesmo os de terceira e quarta geração, foram assimilados do lado branco da bipolaridade de status "branco/negro", herdada da escravidão (GUIMARÃES, 1999, p.54 e 55).descendentes de japoneses e, sendo eles também discriminados, cultuem o preconceito contra os brasileiros.

A discussão com relação ao preconceito dos estrangeiros é bastante fecunda. Bastide e Fernandes (2008) identificaram que os negros acreditavam que os estrangeiros aprenderam o racismo aqui, através das antigas famílias. Ter preconceito era uma forma de se elevar socialmente. Outros defendiam a posição de que os estrangeiros, principalmente os italianos, foram os responsáveis pela exasperação das idéias racistas. Como foi mencionado, o diretor era de origem japonesa, uma etnia que também chega a ser discriminada em certos setores de nossa sociedade, apesar de bastante valorizada pela sua capacidade de trabalho. Ao assumir a posição do estrangeiro em posição de comando nas organizações, pode-se comparar como o esmagamento do colonizado, quando este inclui os valores dos colonizadores, adotando a sua própria condenação. Esse fenômeno é semelhante a negro fobia do negro ou o anti-semitismo do judeu (MEMMI, 1989).

J.A.V., 52 anos, economista e consultor de Recursos Humanos, lembrou-se de uma história que nunca chegou a pensar que pudesse ser um exemplo de racismo ou discriminação. Ele trabalhava em uma empresa italiana e estava contratando um gerente para uma área de produção. Como na época havia uma grande demanda por profissionais especializados, havia poucas opções de candidatos e o melhor era um negro. Ele comentou que foi difícil convencer a diretoria a contratá-lo, mas acabou prevalecendo a sua opinião. Segundo ele, essa foi uma excelente contratação, foi um dos melhores quadros da empresa. Entretanto ele lembrou que foi visitar o candidato em casa, conhecer sua família, onde e como morava, além de uma profunda investigação sobre a vida passada do mesmo. Essa prática não era aplicada para executivos brancos e aí ficou evidenciado o tratamento diferenciado. Pressupõe-se que um profissional nesse nível que seja branco tem uma credibilidade maior, dispensando qualquer tipo de investigação. É preciso novamente citar Chomsky (2000), sobre o estereótipo das raças perigosas que sempre representam uma ameaça ao status quo.

Em outro momento da entrevista ele explicita suas posições com relação às possibilidades de mobilidade social dos negros "As pessoas que estudam, se preparam, ocupam um espaço. À medida que as pessoas se propõem a vencer, elas vencem. À medida que os negros se propõem a vencer e veem isso como um desafio, eles também vencem. (...) Então o problema é o indivíduo se posicionar, acreditar que ele pode, então ele vai vencer. Ele precisa provar que é capaz para poder vencer. Se for mulher e negra então, é bem mais difícil para vencer o preconceito". (J.A V.)

Ele finaliza de forma contraditória ao afirmar que o negro precisa provar que é capaz para vencer. O branco não precisa disso, mas o negro precisa provar que é mais capaz. Ao afirmar que se a profissional for mulher e negra, é mais difícil, reafirma a existência do preconceito racial e de gênero. Assim, historicamente "parece provável que os esforços feitos por pessoas não-brancas para cobrirem uma certa distancia social fossem maiores do que os exigidos por pessoas brancas" (HASENBALG, 2005).

As contratações de profissionais nem sempre obedecem a critérios seletivos em função do nível funcional, mas ocorrem também em atividades de "chão de fábrica" como relata o depoente R.F.O 49 anos, branco, administrador de empresas e consultor de RH. Ele relata que numa empresa americana, bastante tradicional, um supervisor de um setor em que trabalhavam muitas moças como auxiliares de produção, ele era taxativo: "Escurinhas, nem adianta mandar para entrevista". Nas épocas em que o volume de produção demandava um número maior de empregadas ele era obrigado a aceitá-las, mas quando a demanda se estabilizava, eram as primeiras a serem demitidas. Esse fato indica que realmente o padrão de discriminação está associado, também, aos interesses do capital, que são mais relevantes quando afeta os níveis de acumulação. (IANNI, 2009).

O R.F.O. observa que não tinha negros nos escritórios dessa empresa e admite que pudesse haver uma orientação geral neste sentido. Essas orientações não são públicas e se questionadas, os representantes das empresas jamais admitirão publicamente uma postura de discriminação ou de racismo. Para Damasceno (2000) e Hasenbalg (2005) o negro precisa ficar invisível nas empresas, pois nos escritórios eles teriam visibilidade, prejudicando o relacionamento com clientes e consumidores. Neste sentido haveria a discriminação de negros e mulatos não somente pela qualificação, mas também por não serem esteticamente adequados. "Nos escritórios não havia negros, mas não havia nada explícito contra, ou melhor, havia sim. O gerente geral pedia que se evitasse, pois o diretor achava que poderia dar algum problema. (caso de uma multinacional americana)" (R.F.O.).

H.L. outro depoente, 48 anos, branco, Administrador e Gerente de Recursos Humanos se contradiz ao lembrar-se de uma empresa cujos proprietários eram franceses. "Lá não tinha muita discriminação, mas como os proprietários eram franceses (e a gente conhece mais ou menos como é a cultura francesa...). Não era uma coisa explícita, mas procurava-se evitar contratações que não fossem dentro dos padrões que os donos estabeleciam. Não havia uma orientação explícita, mas quando se apresentavam candidatos com este tipo de perfil (negros), eles eram preteridos".

Inicialmente ele declara que não havia muita discriminação, mas depois assume que sim e coloca a culpa nos franceses. A frase sobre a cultura francesa pode revelar o preconceito que os brasileiros acreditam que os estrangeiros têm em relação aos diferentes (negros). É possível que os franceses dessa empresa nunca tenham se manifestado a este respeito, mas os brasileiros podem ter assumido o preconceito em nome deles. Os brasileiros se envergonham dos seus compatriotas negros e mestiços, procurando escondê-los sob o tapete da invisibilidade. Como o preconceito permeia a nossa sociedade, os executivos brasileiros procuram proteger os seus patrões estrangeiros daqueles que eles consideram "perigosos ou feios", pois apesar de se sentirem "europeus" e ao mesmo tempo brasileiros, incorporam o mesmo estigma do colonizado, mas transferindo para os outros (os negros e mestiços) a inferioridade. Como "colonizado, não procura apenas enriquecer-se com as virtudes do colonizador em nome daquilo que deseja vir a ser, empenha-se em empobrecer-se, em arrancar-se de si mesmo" (MEMMI, 1989, p.107).

Numa outra perspectiva, a pesquisa de Bastide (2008) identificou na população de São Paulo a percepção de que os franceses não tinham preconceito, mas ao conviver com as elites paulistanas, assimilavam a elegância e a discriminação.

M.S., psicóloga, negra, Consultora de Recursos Humanos, sentiu na pele a discriminação, mesmo gozando de algum poder dentro das organizações em que trabalhou. Ela narrou que numa empresa estatal, quando trabalha como selecionadora de pessoal, um supervisor pediu que ela não enviasse negros para entrevista. Ela respondeu para ele: "O senhor sabe qual é a minha cor? Então eu não posso trabalhar na empresa...". Num outro momento de sua narrativa ela conta que ao discutir uma questão profissional com uma gerente do mesmo nível, esta lhe respondeu: "Coloque no seu lugar negrinha!". Qual é o lugar dos negros? Na senzala?" A cultura brasileira ainda é permeada de componentes da velha aristocracia rural que parece não ter ainda assimilado, mesmo depois de mais de cem anos, o fim do trabalho escravo.

Os recortes dos depoimentos inseridos no presente artigo representam apenas parte dos casos de discriminação narrados pelos profissionais entrevistados e ficaram restritos aos aspectos relacionados aos processos de ingressos de profissionais nas organizações. Outras formas de discriminação estão ligadas a mobilidade profissional nas empresas que devem ser tratados em outro artigo. Os dados relatados são contundentes e revelam as sutilezas de um sistema social que segrega "amigavelmente" o diferente, evitando a exposição dos algozes aos ditames da lei.

5. Considerações finais

Mesmo considerando as limitações implícitas neste trabalho cuja natureza é ainda exploratória, há fortes indícios da existência de práticas discriminatórias com relação ao outro, o diferente. As práticas não são deliberadas e não partem de políticas ou filosofias empresariais, mas está presente na herança cultural de toda uma sociedade, em todos os níveis e classes sociais. As organizações empresariais em seus estatutos ou políticas formalmente escritas não explicitam tais atitudes, mas as pessoas que as dirigem ou mesmo aqueles "pequenos" burocratas que detém algum poder respaldado pelas próprias normas organizacionais, cuja interpretação lhes asseguram algum nível decisório, podem em algum momento, utilizar critérios pessoais que resultam em discriminação.

Os depoimentos ilustram claramente o que foi afirmado. As empresas nas quais os depoentes trabalharam ou trabalham, nunca deixaram explícito o que esperavam deles sobre esta ou aquela atitude. Talvez por omissão, talvez por serem consideradas desnecessárias ou mesmo por questões ideológicas, preferindo colocar o problema no nível da invisibilidade. As práticas relatadas explicitam de modo inequívoco a presença na sociedade de uma herança cultural repleta de preconceitos, percepções equivocadas e petrificadas sobre a existência de uma hierarquia entre os grupos humanos. Outro dado que merece destaque é a percepção de que o estrangeiro compactua com este estado de coisas, quando pode ser apenas um preconceito transferido para o outro, ou a idéia de proteger o outro contra aqueles que são considerados indesejáveis. Um dos depoentes afirmou: "Você sabe como são os franceses...", em relação à idéia de que os franceses seriam etnocêntricos e que não gostavam de pessoas negras. Outro se preocupava com a possibilidade dos diretores alemães não aceitarem a possibilidade de uma cozinheira negra cuidando da sua comida. Esses preconceitos estariam na mente dos próprios brasileiros, contaminados por séculos de discriminação do outro, decorrência de um passado escravista. Evidentemente não se tem a pretensão de excluir os estrangeiros de qualquer possibilidade de práticas racistas, mas considerando a lógica empresarial e os pressupostos da racionalidade administrativa, parece possível que essas questões seriam pouco relevantes para os resultados organizacionais de uma empresa multinacional em um outro país.

Em princípio, pode-se descartar a relação entre práticas discriminatórias e a origem da empresa, mesmo que isso possa ocorrer de forma isolada. Alguns depoentes consideram que algumas empresas multinacionais têm apenas um discurso de ação afirmativa, mas na prática pouco fazem para a concretização dessa política. Outro entende que as empresas brasileiras são mais abertas do que as multinacionais, não criando obstáculos à contratação de afro-descendentes em seus quadros, mas admite em outro momento do depoimento que em alguns setores mais tradicionais da economia, isso não se concretiza.

Outra questão relevante que foi discutida é a "boa aparência", uma metáfora que pode estar ocultando um profundo preconceito com relação ao outro. Seria ilusório pensar que o selecionador de pessoal ao receber uma solicitação de funcionário que mencione "boa aparência" consideraria a possibilidade de contratar o diferente, o "outro". Os meios de comunicação impõem um padrão estético à sociedade, que mesmo sendo multiétnica, acaba incorporando esses valores.

Entretanto, é preciso ressalvar, que muitas organizações vêm adotando ações afirmativas, principalmente as grandes corporações multinacionais, que por estarem instaladas em várias partes do globo e frente a frente com uma imensa diversidade cultural e étnica, consideram essas ações como necessidade estratégica para sobrevivência num mercado globalizado.

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