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Revista AutoEsporte

Olha aí, olha aí, freguesia

Publicado em 01 setembro 2010

POR CARINA MAZAROTTO

Todo sábado, nas ruas pacatas do bairro Taboão, em São Bernardo do Campo (SP), passa o Uno Mille verde do seu José. Ele vem devagar, a menos de 20 km/h, muitas vezes no mesmo ritmo em que alguns moradores caminham pela calçada. "Vou esperar um pouco aqui, às vezes a mulher dessa casa compra", diz, sorrindo, ao parar o carro. Sobre o capo, o alto-falante improvisado ecoa uma melodia muito conhecida por ali. E por todo o país.

É isso aí, freguesia. São as deliciosas pamonhas. Não de Piracicaba, mas nem por isso menos fresquinhas. Há 18 anos, José Geraldo da Silva, 47, pai de três filhos, acorda todos os dias às 5 horas da manhã, ao lado de sua esposa, Cleonilde dos Santos Silva, a Nena, para preparar o "puro creme do milho" em sua casa. Milho fresco, sempre comprado na noite anterior, para uma receita que também leva açúcar, água, leite e manteiga. "Ah, mas não é tão fácil assim, não. Tem que ter o segredo" diz.

Quando tudo fica pronto, perto das 11 horas, seu José vai para as ruas. Vai sem Nena, mas leva um outro companheiro inseparável, o Uno 1991, com mais de 300 mil quilômetros rodados. "Tá vendo aquele bar ali? Vou vender um bolo de milho." Dito e feito, seu José. No porta-malas e no banco de trás do carro há três caixas térmicas com 100 pamonhas, 30 curais, dez sucos de milho e 20 pedaços de bolo. Cada unidade custa R$ 2, mas ele faz três por R$ 5. "Dificilmente sobra, e quando sobra, negocio com a padaria perto de casa ou dou para alguém. Trazer para outro dia? É nunca" garante.

O carro tem poucas adaptações. O jingle da pamonha, hoje tocado em CD, chega ao alto-falante por um emaranhado de fios preso por fitas no assoalho e na porta do passageiro. A voz que atrai os clientes (quem é que nunca ouviu?) é a mesma utilizada em várias regiões do país há décadas {leia box na página 118). Há também um interruptor ao lado esquerdo do rádio." É só apertar aqui que o som fica só lá fora". Mas depois de tantos anos, seu José nem liga mais para o incansável pamonha, pamonha, pamonha. "Se eu sonho com isso? Nada! Você é que vai sonhar hoje", brinca.

Enquanto passapelas ruas anunciando a chegada do creme de milho, a tampa do porta-malas fica aberta. Para segurá-la, solução simples: cabo de vassoura. "O suporte sempre quebra." Foi assim com os outros três Fiat que ele teve. "O primeiro foi um 147 branco." Depois o vendedor comprou um Fiat Spazio e um Mille 1986. Não tem perigo de a caixa cair? "Aconteceu uma vez só, há muito tempo, com a Belina que era do meu primo. Fui subir essa rua aqui, na época era paralelepípedo, e rolou tudo", lembrou, rindo, enquanto subíamos uma das mais íngremes ladeiras do bairro. E se o carro quebrar? "É prejuízo na certa, porque fico sem vender e perco as pamonhas."

A trajetória de seu José pelas ruas da região começou em 1992, ano em que saiu de Martinópolis, cidade do interior paulista onde nasceu, para seguir os passos do irmão, que até hoje é vendedor de pamonhas. De lá para cá, além de acertar o segredinho de uma boa receita, junto com a esposa Nena, ele aprendeu as estratégias para ser um bom vendedor. "Aquele ali olhou pra mim, acho que vai comprar", comenta, ao ver um senhor caminhando lentamente pela rua. Aí, seu José! Lá se vão mais dois pedaços de bolo. "Viu só, tem que ter feeling" sorri.

A maioria dos moradores do bairro fica à espera de seu José. "Vó, olha o moço da "mamonha!"", diz a menininha de apenas dois anos, pelo portão, enquanto passamos. Na rua ao lado, Paulo Kia, 74, é outro cliente fiel. O senhor simpático atravessa a rua lentamente quando avista o Uno. Cumprimenta seu José, pede um curai. "Hoje é só um, as crianças não querem", justifica, enquanto os netos brincam na rua. Com uma inconfundível calma oriental, tira o copo de curai do saquinho, bem devagar, e começa a comer ali mesmo, colherada por colherada, enquanto desabafa, com bom humor. "Eu tenho problema no joelho e o médico disse para eu não pegar mais descida. E como é que eu vou chegar até minha casa?", diz, rindo, olhando para a ladeira à sua frente.

Ser pamonheiro também é ser conselheiro. "Viro terapeuta, faço parte da vida dessas pessoas." Seu José coleciona muitas histórias. Já parou para dar carona em dia de chuva, arrumar campainha e até carro quebrado. "Esses dias mesmo tive que separar briga de um casal", lembra. Os dois discutiam quando o Uno de seu José passou. A moça correu para o portão, porque não queria perder a pamonha. E o marido queria continuar brigando. O vendedor ficou ali, no meio da confusão. "Ai meu Deus, me abençoa, o que vou dizer para ajudar esses dois?", pensou.

VOCÊ SABIA?

A tradicional pamonha de Piracicaba surgiu em meados dos anos 50, pelas mãos das irmãs Vasthy e Noemi Rodrigues. As duas resolveram produziras pamonhase vendê-las para ajudar no orçamento da família. No início, faziam 200 pamonhas por dia e ofereciam de porta em porta. Anos mais tarde, com a famosa gravação amplificada nos carros, a produção chegou a 6 mil unidades. De quem é a voz?

//Dirceu Bigelli. O comerciante de Piracicaba, falecido na década de 90, gravou o "jingle" em fita cassete, em 1969, para vender as tradicionais pamonhas da cidade. A gravação original — "Pamonhas, pamonhas. Pamonhas de Piracicaba. Venha provar, é uma delícia. É o puro creme do milho verde! Pamonhas, pamonhas, pamonhas" — se espalhou:por diversas cidades do país e é usada até hoje. Apesar da repercussão de Piracicaba, pamonha também é um prato tradicional em outras regiões, como Goiás e Minas Gerais.

//Quase 60 anos depois, a pamonha de Piracicaba acaba de ganhar uma fábrica na cidade, no Centro Rural de Tanquinho. A indústria é resultado de um projeto entre o Sebrae-SP, a prefeitura de Piracicaba e a Fapesp, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. A fábrica começa a operar ainda neste ano e terá capacidade de produção de 6 mil pamonhas por dia.