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Ocupação Mulheres 2025 | Desordenando a família, a produção e a política: o ativismo das mulheres camponesas como “grande ousadia”, por Fernanda Folster de Paula (1 notícias)

Publicado em 12 de março de 2025

A nova rodada de publicações na semana do 8M traz texto de Fernanda Folster de Paula (UFOPA). A socióloga analisa a atuação do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) no oeste de Santa Catarina, destacando sua luta por autonomia e justiça social em um contexto historicamente dominado por estruturas patriarcais e pelo avanço do agronegócio. A noção de Feminismo Camponês Popular emerge como síntese dessa resistência, demonstrando que a transformação social pode estar nos gestos cotidianos de mulheres invisibilizadas.

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Desordenando a família, a produção e a política: o ativismo das mulheres camponesas como “grande ousadia”

Por Fernanda Folster de Paula (UFOPA)

Pra mim, participar do movimento vai tornando as mulheres mais preparadas, com mais condições de se colocarem em todos os espaços da sociedade, seja no campo do movimento sindical, da política partidária, da universidade, das escolas, enfim […]. Então, nesse momento histórico que a gente vive, ter um movimento social organizado, um movimento autônomo de mulheres, pra mim é uma grande ousadia (entrevista realizada em 2019, grifo meu).

A fala que abre este texto é da Justina Cima, militante do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), e moradora do município de Quilombo, na região oeste de Santa Catarina. A fala foi feita em 2019[1], primeiro ano da gestão de Jair Bolsonaro na Presidência da República, num momento de profunda desestruturação das políticas de Estado para a agricultura familiar. É importante lembrar que, no segundo turno das eleições presidenciais de 2018, 75,9% dos votos válidos em Santa Catarina foram para o candidato vencedor[2], que se elegeu apoiado em uma plataforma política de extrema direita que abertamente proferiu diversos ataques contra os povos indígenas, quilombolas e aos camponeses sem terra.

Os enfrentamentos do MMC, porém – que se posicionou abertamente contra as políticas do governo Bolsonaro – não começaram com essa eleição. A ousadia a qual Justina se refere é muito anterior ao enfrentamento político que se exacerbou a partir de 2018: Justina chamava atenção também para a coragem das mulheres em organizar um movimento autônomo numa região colonizada por famílias imigrantes alemãs e italianas, nas quais a autoridade dos homens parecia até então inquestionável, e numa região ainda marcada pela emergência de movimentos mistos de luta por terra e por políticas públicas para a agricultura familiar, os quais, não poucas vezes, acusaram o movimento de mulheres de dividir a luta do campesinato.

A ousadia das mulheres camponesas não é pouca e, como Justina me relatou, começa com o incentivo para que elas saiam de casa para “participar da vida”:

A importância de participar é primeiro porque tira as mulheres daquela rotina, então acho que uma das maiores conquistas é conseguir tirar a mulher de dentro de casa, e colocá-la num grupo pra debater sobre a sua vida. Então, pra mim, isso tem um valor imensurável, porque foram muitos depoimentos ao longo da história, de “eu nunca falei sobre isso”, “eu nunca pensei sobre isso”, “aqui é que eu encontro força”, “agora eu entendi”, enfim. Então, pra mim esse primeiro passo, de tirar as mulheres de casa é fundamental (entrevista realizada em 2019).

Sair de casa para participar da vida seria, então, a primeira entre muitas outras ousadias, e como outras militantes do movimento me contaram, ela não passou despercebida pelos homens. As reações vieram de muitas formas, desde o boicote financeiro para impedir as viagens com o movimento, até o proposital acúmulo de serviços domésticos durante a saída das mulheres, que me contaram que não foram poucas as vezes em que chegaram em casa para se deparar com uma pia cheia de louça suja, ou com uma enorme pilha de roupas para lavar. Ao sair do espaço doméstico para se organizarem politicamente, as mulheres passaram a questionar a organização da família tal como ela ocorria até então, um pilar fundamental para a divisão dos trabalhos, da renda, da terra e do poder.

Se a reação dos homens sobrecarregou as mulheres, certamente não as impediu de continuar seus ativismos. Inicialmente, o foco deste ativismo era o questionamento do papel do sindicato e da falta de representatividade das mulheres nessa organização política, assim como a reivindicação de direitos trabalhistas para as mulheres. Porém, não demorou para que o ativismo das mulheres voltasse sua atenção para o trabalho da agricultura familiar dentro das propriedades familiares.

Nessas décadas de 1980 e 1990, a produção das famílias camponesas no oeste catarinense passava por grandes transformações. A agroindústria estava se consolidando na região mediante o estabelecimento de contratos integrados com as famílias camponesas, por meio dos quais a cadeia produtiva de frango, suínos, fumo e, posteriormente, de leite, terceirizavam uma parte do processo produtivo às famílias camponesas, que passam a contratualmente ter uma série de regras para a condução da produção agropecuária. Isso implicou na especialização da produção das famílias, na perda de autonomia em relação ao processo produtivo, impactou a soberania alimentar e, como Justina me relatou, implicou também na maior dificuldade de acesso à renda pelas mulheres, que dependiam da diversidade produtiva para a comercialização de seus produtos (como ovos, geleias, queijos e pães).

Além do impacto na diversidade produtiva, que teve efeitos negativos na alimentação das famílias, a integração produtiva implicou no endividamento das famílias para a modernização da produção familiar – o que teve graves consequências para a saúde mental dos camponeses –, e no uso obrigatório de agrotóxicos, que, segundo as mulheres do MMC, tiveram graves consequências sobre a saúde das famílias. Justina me relatou diversos casos de câncer em sua própria família, e apontou este como um elemento importante para o surgimento das reivindicações do MMC em torno da garantia à saúde pública de qualidade e em torno de uma produção agrícola saudável.

Diversos movimentos de mulheres – muçulmanas, negras, camponesas, curdas – já apontaram para o fato de que os conteúdos das lutas pela libertação das mulheres são variados, e não se limitam às reivindicações que os movimentos feministas ocidentais brancos historicamente projetaram. Em outras palavras, a luta contra as desigualdades assume muitas formas, e o nosso imaginário político feminista precisa ser amplo o suficiente para entender a importância que a sexualidade, a espiritualidade e as diferentes subjetividades tem na construção de identidades e reivindicações políticas heterogêneas (Truth, 1851; Mohanty, 1988; Calaça, 2021).

Para as mulheres do MMC, por exemplo, a reprodução da família é um aspecto central para a construção do ativismo camponês. Se elas precisam sair de casa para problematizar e entender as desigualdades às quais são submetidas no lar, ao retornarem, o lar torna-se também um lugar de incidência política, um espaço de transformação das relações de poder na família e de transformação da própria produção familiar.

Nesse sentido, a preocupação com a saúde da família e o cuidado para com a família, algo atribuído às mulheres devido à diferença de gênero, concorre para que elas formulem um projeto de vida agroecológico, que rejeita o uso de agrotóxicos, a especialização produtiva e a precarização do trabalho na terra. Nesse sentido, o cuidado para com a família e a construção de um projeto político de produção tornam-se elementos conectados, a denotam como a diferença de gênero foi importante para modular o ativismo das mulheres camponesas. Retomo aqui mais um trecho da fala da Justina:

O meu porto seguro, a minha morada, a minha segurança é lá na roça, e como eu vivi muito tempo da minha infância e adolescência, faltando comida, comendo mal, comendo pra sobreviver, hoje estar lá e com o aprendizado que nós tivemos no movimento de mulheres, então a nossa unidade de produção, apesar de serem três hectares só, mas é o espaço que dá muita segurança, lá está um quintal produtivo, digamos assim, que tem as vaquinhas de leite, que tem os porquinhos, que tem galinhas caipiras, ovos, que tem um pomar fantástico, que tem uma produção diversificada e saudável, e a gente tem todo um aprendizado das sementes, da industrialização artesanal, então pra mim aquilo ali dá uma segurança muito grande (entrevista realizada em 2019).

Nota-se que ideias de saúde, segurança e família são mobilizadas para a construção de um projeto político de produção, modulado pela diferença de gênero. Importa, sobretudo, garantir a alimentação saudável e culturalmente referenciada das famílias camponesas, com diversidade produtiva.

Aos poucos, e também a partir dos diálogos estabelecidos com outros movimentos políticos, as mulheres militantes do MMC vão sintetizando seu projeto produtivo na noção de Agroecologia, inseparável do modo próprio como constroem os conteúdos da sua luta por libertação, sintetizado na noção de Feminismo Camponês Popular.

Em um lugar caracterizado pela colonização levada a cabo pelo poder do pater familias, pela hegemonia masculina no mundo político, e pela crescente estruturação das agroindústrias – e do agronegócio –, as mulheres camponesas ousaram e ousam desafiar a ordem. Há quem espere a revolução conduzida pelos partidos políticos de esquerda – e todo respeito, cada um com suas convicções –, mas me permitindo uma ousadia nesse texto, gostaria de sugerir que talvez tenhamos mais a aprender sobre revolução com as Justinas, Margaridas, Zenildes, Marietas e Angélicas, que talvez passem tão despercebidamente pelo nosso cotidiano.

Notas

[1] Os trechos das entrevistas apresentados neste texto foram coletados durante a realização de pesquisa de mestrado (2018-2020), cujos procedimentos foram apreciados e aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética 022090.18.0.0000.8142). O trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº 2018/12938-7.

[2] Dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mais informações podem ser consultadas em: aqui.

Referências

CALAÇA, Michela. (2021). Feminismo camponês popular: contribuições à história do feminismo. RURIS, v. 13, n. 1, p. 29-66.

MOHANTY, Chandra. (1988). Under Western eyes: Feminist scholarship and colonial discourses. Feminist review, v. 30, n. 1, p. 61-88.

TRUTH, Sojourner. (2014). Ain’t I a Woman? Tradução: Osmundo Pinho, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (Cachoeira)/University of Texas (Austin).

Sobre a autora

Fernanda Folster de Paula é professora substituta na Universidade Federal do Oeste do Pará (IFII/UFOPA). Possui doutorado em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas e tem como temas de interesse: territorialidades e conflitos fundiários, gênero e campesinatos.