Na entrada da sala, uma foto de Albert Einstein na estação de Princeton, Estados Unidos. "Eu esperava garotas com colegas e Einstein esperava sua irmã. Gritei 'Professor Einstein!', e ele veio sorrindo falar conosco. Depois tirei essa foto". Abaixo, uma foto de Wolfgang Pauli, o criador do princípio da exclusão de Pauli - dois elétrons não podem estar ao mesmo tempo no mesmo lugar e no mesmo estado - e chamado por seus colegas de "consciência da física". "Pauli foi meu orientador de tese de doutorado em Princeton." Mais abaixo, na mesma parede, Richard Feynman, o maior físico da segunda metade do século XX. "Ele me convidou para passar uma temporada trabalhando com ele no Califórnia Institute of Technology. Aqui só tem gente desse calibre."
As frases são de um brasileiro de 80 anos, o físico pernambucano José Leite Lopes, radicado no Rio de Janeiro, um dos maiores físicos da história do Brasil. Além de seus trabalhos em física teórica. Leite Lopes foi um dos fundadores, com César Lattes e outros, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). Expulso da universidade pelo AI-5, Leite Lopes recebeu convites para trabalhar em várias universidades estrangeiras - inclusive para voltar ao Instituto de Estudos Avançados de Princeton, onde estudou entre 1949 e 50 a convite de Oppenheimer, desta vez convidado por Freeman Dyson, outro grande nome da física moderna. Optou por se exilar na Universidade de Strasbourg e lá permaneceu até 1985, quando voltou para dirigir o CBPF. E de 1989 para cá se dedica a escrever livros sobre o que considera um dos temas mais importantes para o futuro do país: as relações entre educação, ciência e liberdade. Em entrevista a este jornal, em seu escritório na CBPF, ele fala sobre sua carreira, sobre seu professor Mario Schenberg, sobre o colega César Lattes e sobre os dois Prêmios Nobel de Física com quem teve relações estreitas: Pauli, seu orientador de doutoramento, e Feynman, que passou um ano no Brasil a seu convite e com quem trabalhou nos Estados Unidos. Também comenta o corte orçamentário no CNPq e a relação dos governo e dos empresários com as universidades no Brasil.
Gazeta Mercantil - O sr. foi o pioneiro na unificação das forças eletromagnéticas e fracas com um trabalho de 1958 em que previu a existência do bóson neutro (Z0) - teoria formulada anos depois com rigor por Steven Weinberg, Abdus Saiam e Sheldon Glashow, pela qual dividiram o Prêmio Nobel de Física de 1979. Entretanto, Richard Feynman disse certa vez que não se sentia confortável com a matemática utilizada na eletrodinâmica quântica, teoria fundamental para a unificação entre as forças eletromagnéticas e fracas. O sr. acha que a física quântica é realmente adequada à descrição da natureza?
José Leite Lopes - Por enquanto não foi encontrada nenhuma contradição na mecânica quântica. O problema é sua interpretação básica probabilística, que deixa muito gente desconfortável, como Einstein, que levantou alguns problemas; mas os cálculos têm dado certo sempre. Einstein achava que era uma teoria provisória; agora, encontrar outra não está sendo fácil.
GZM - Por quê?
Leite Lopes - É preciso uma idéia nova. Houve a idéia do físico David Bohm, sobre as variáveis ocultas, mas também não funcionou. Então, no fundo... o que disse Weinberg na entrevista ao seu jornal?
GZM - Que a teoria quântica é correta e interpreta toda a química.
Leite Lopes - Exato, há bastante tempo. As forças das ligações químicas são provenientes da ação do elétron no átomo. Acho que a mecânica quântica é a teoria correta.
GZM - Mas qual das interpretações da mecânica quântica?
Leite Lopes - A de Copenhague foi a que deu certo, no sentido de que a mecânica quântica prevê probabilidades, por isso o princípio da causalidade não é rigorosamente verdadeiro. Há um estado agora que evolui no tempo e dá lugar a outro estado, mas, como não é bem definido, há sempre probabilidades. Então você tem uma evolução que acarreta provavelmente outro estado. Nesse sentido, vale o princípio da causalidade, em outro sentido.
GZM - O sr. acha que pode existir velocidade de propagação superior à da luz, ou isso ainda é especulação não científica?
Leite Lopes - Trabalhei até sobre os táquions, que se propagariam a velocidade superior à da luz e atrapalhariam o princípio de causalidade. Mas ainda não há uma confirmação precisa da existência de ações que se propagam assim.
GZM - Isso colocaria em xeque a Teoria da Relatividade, que afirma que nada pode se propagar a velocidade superior à da luz?
Leite Lopes - Não, pois você tem até equações que governariam o comportamento dessas partículas, e elas são relativísticas.
GZM - O sr. foi aluno de Mario Schenberg e colega de César Lattes, dois dos maiores físicos que o Brasil já teve. Qual a real importância deles para a física no Brasil?
Leite Lopes - Mário Schenberg foi talvez o maior físico teórico do Brasil. Ele se formou em 1937, veio de Pernambuco, como eu, e fez o curso de engenharia elétrica na Escola Politécnica em São Paulo e o de física na Faculdade de Filosofia. Foi aluno do Gleb Wataghin, grande pai da física moderna no Brasil, que mandou Schenberg para a Europa. Ele passou pela Itália para trabalhar com Enrico Fermi, foi a Zurique ver Pauli e a França ver De Broglie, depois voltou. Em 1938, passou pelo Recife e foi para os Estados Unidos, com uma bolsa Guggenheim, trabalhar com George Gamow. Lá, desenvolveu um trabalho muito importante em que mostrava que, quando uma estrela entra em colapso e se reparte em super-novas, a perda de energia se dá por emissão de neutrinos. Ele trabalhou também com o astrofísico hindu Chandrasekhar, ganhador do Nobel de Física. Nessa época, eu tinha acabado o curso de química industrial em Recife e havia ganhado uma bolsa. Vim para o Rio de Janeiro e prestei vestibular para física. Quando acabei o curso em 1942, fui para São Paulo. Em 1943, estudei com Schenberg, que havia voltado. Assisti aos cursos, trabalhei com ele, Ficamos muito amigos e publicamos um trabalho juntos. Logo depois fui para Princeton, ganhei uma bolsa do Departamento de Estado Americano. Fui apresentado a Pauli e fiz meu doutorado com ele. Para mim foi maravilhoso. Nunca pensei que iria chegar a esse ponto. Tenho cartas trocadas com Pauli que foram publicadas em livro.
GZM - E a importância de César Lanes?
Leite Lopes - Muito grande. Nos conhecemos em São Paulo, fomos alunos de Schenberg na mesma época. Eu fui para Princeton e ele para Brixton. Nós correspondíamos por carta; eu queria trazê-Io para o Rio Janeiro, pois achava que era importante haver ciência fora de São Paulo, que havia começado muito bem com Wataghin, Schenberg, Marcelo Damy de Souza Santos, Paulus A. Pompeia, etc. Escrevia para Lattes em Brixton quando ele fez o trabalho, com Giuseppe Occhialini e Cecil Powell, sobre o méson pi na radiação cósmica. Eu já tinha voltado para o Brasil. Fui nomeado professor da Faculdade Nacional de Filosofia, quando Lattes veio com as emulsões nucleares (chapas fotográficas muito sensíveis) para expor em La Paz, a cinco mil metros de altitude, na Bolívia. Foi aí que ele revelou as emulsões e descobriu as fotos do méson pi se desintegrando e dando méson mi. Ele ficou importante. Depois veio para cá, mas ganhou uma bolsa da Fundação Rockefeller para ir a Berkeley. Ele se casou e foi para lá. Quando chegou, o grande acelarador de partículas deles já estava produzindo mésons, mas eles não sabiam revelá-los. O Lattes chegou e mostrou como fazia. Foi muito importante esse trabalho dele, porque, além de méson pi na radiação cósmica, ele mostrou que os mésons mi são produzidos na colisão próton com próton. Em 1949, eu fui para o Instituto de Estudos Avançados de Princeton, a convite de seu diretor, Oppenheimer. Lattes ainda estava em Berkeley e veio de carro me visitar em Princeton. Quando chegou, como o trabalho dele era muito importante, foi logo ao gabinete de Oppenheimer - fomos juntos - para dizer quais eram os resultados da massa do méson pi. Ele media todas essas coisas que estavam sendo estudadas. Era um prestígio enorme.
GZM - Seus escritos da década de 60, alguns deles reunidos em "Ciência e Liberdade", recém-lançado, o sr. critica a organização das universidades e a forma como o dinheiro era aplicado nelas. Houve avanço daquela época para hoje?
Leite Lopes - Passei vinte anos exilado na França. Nesse período houve um grande progresso. A minha luta quando assumi a cátedra em 1948 era pelo tempo integral para os professores, pela dedicação exclusiva. Era preciso que os professores primeiro fizessem pesquisa na universidade para depois não ter de se ocupar com outras coisas. Logo, tinham de ganhar melhor do que um professor que só desse aula. Isso se chamava "regime de tempo integral" e não existia no Rio de Janeiro. Havia o Departamento Administrativo de Serviço Público, o precursor do Ministério da Administração e Reforma Agrária (MARA), e ele não previa tempo integral para professor de universidade. A ditadura "botou gente para fora" em 1969 - eu, Schenberg e outros-, mas eles introduziram o tempo integral e houve um crescimento da física em todo o Brasil. O Instituto de Física da Universidade de Pernambuco é muito bom. Há física boa também em Fortaleza, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba. E em São Paulo e no Rio de Janeiro. A física cresceu. Quando saí, em 1969, praticamente só havia São Paulo e estávamos lutando para estabelecer a física no Rio de Janeiro. O lamentável é que o governo Fernando Henrique Cardoso não esteja apoiando as universidades como deveria. Não achei que chegaríamos a esta situação, com falta de dinheiro para as pesquisas. O CNPq tinha dinheiro; fui a congressos em Caracas, no México, e o Brasil era citado pelo programa de bolsas de estudo no exterior. Com elas, se formaram muitos físicos e cientistas em geral. Tudo isso foi cortado agora, e é por isso que estamos atacando o governo. É preciso que eles apóiem as bolsas de estudo e a pesquisa científica.
GZM - O sr. falou do crescimento da física durante a ditadura, mas as grandes cabeças da física brasileira estavam exiladas, e os grandes físicos quase sempre tiveram um mestre como no caso de Feynman (orientado na juventude por John Wheeler, que cunhou o termo buraco negro) ou Werner Heisenberg (que estudou com Niels Bohr em Copenhague). A ausência daquelas cabeças não deixou muitos "órfãos" no Brasil?
Leite Lopes - A ausência deve ter tido efeito. Há uma falha nesse período, mas, em 1970, a Universidade de Campinas foi criada. A ditadura travou sobretudo a evolução política. Não temos nenhum líder político. As universidades precisam se modernizar, mas vamos esperar que melhorem.
GZM - Onde está a nova geração de grandes físicos brasileiros? Quem são eles?
Leite Lopes - Em Pernambuco há grupos muito bons; há o Sérgio Machado Resende e o Ricardo Fereira. No Rio de Janeiro, há Moisés Nussezweing, Carlos Alberto Aragão de Carvalho e outros. No CBPF há um grupo de física de alta energia que trabalha em colaboração estreita com o Fermilab, de Chicago, que é o grupo do Alberto Santoro. Eles participaram, por exemplo, da descoberta do "top quark" em 1995, o quark que faltava à teoria de Murray Gell-Mann. Se ele não existisse teríamos de recomeçar tudo.
GZM - Nos textos de seu livro "Ciência e Liberdade", o sr. também fala sobre a necessidade de investir em ciência para o desenvolvimento de um país e dá o exemplo bem-sucedido da Inglaterra e dos Estados Unidos. Como o sr. vê a situação brasileira atual?
Leite Lopes - A Fapesp é a única que tem dinheiro, pois o Estado de São Paulo é mais rico. As instituições equivalentes à Fapesp nos outros estados são pobres; dependem essencialmente do CNPq e da CAPES. O investimento em ciência no Brasil decaiu um pouco, e até São Paulo está sofrendo com essa recessão. É grave e nunca esperávamos que acontecesse dessa forma.
GZM - As pesquisas anuais feitas pela National Science Foundation (NSF) americana mostram que mais da metade dos americanos não sabe que o elétron é menor do que o átomo e que a Terra dá uma volta completa em torno do Sol em um ano. Uma demonstração da falta da educação científica nas escolas americanas. No Brasil, como vai a educação científica?
Leite Lopes - A nossa está abaixo da americana. O problema é que a educação fundamental (primeiro e segundo graus) nunca foi estimulada no Brasil. Desde a colônia até hoje, a educação básica do povo foi desprezada pelas autoridades, pelos industriais, pelos empresários e também pelos intelectuais. O povo tem de sér bem educado. Isso é fundamental para compreeender a vida, para as invenções, para tudo. O Ministério da Educação foi criado depois da revolução de 30. O Colégio Pedro II, um colégio federal, só existe no Rio de Janeiro. É lamentável que o governo central não tenha fundado colégios em outros estados. A evolução da educação no Brasil é um quadro triste, pois o governo e os empresários nunca ligaram para ela. Somente agora descobriram que estamos às vésperas de um século em que o que irá valer são as tecnologias novas, então ficam preocupados porque o operário precisa ter uma educação básica. Os economistas famosos, que estão nas páginas dos jornais, nunca disseram na vida deles que a educação era um investimento para o desenvolvimento.
GZM - E a educação científica?
Leite Lopes - É muito importante, pois as pessoas têm de entender o mundo em que vivem, tem de ver que não vivem em um mundo mágico, de milagres. O mundo obedece a leis científicas, leis racionais, que possuem uma beleza muito grande. Propus que os cientistas dedicassem algumas horas de sua vida a fazer conferências sobre a área da ciência em que atuam para alunos do secundário. Fiz doze conferências assim no ano passado. Eles adoravam. É necessário que haja uma explicação melhor do que é ciência e de como se desenvolveu e se desenvolve.
GZM - Hoje existe o problema da falta de interação entre universidade e sociedade?
Leite Lopes - Acho que todos os anos as universidades deveriam abrir suas portas e oferecer cursos para o cidadão, em particular cursos para os professores secundários ginasiais. Eles deveriam ir cada ano às universidades, em suas especialidades, para ver o que está acontecendo no mundo, pois em geral ganham muito pouco e não têm tempo nem dinheiro para se reciclar. Venho falando sobre isso, mas os cientistas, em geral, recebem o dinheiro deles, ficam fazendo suas pesquisas e dão banana para o resto. Eles também deveriam dedicar tempo para escrever livros para alunos.
GZM - O sr., com o prof. Jayme Tiomno, trouxe Feynman para passar um ano no Brasil; depois foi passar uma temporada no Caltech, trabalhando com ele. Alguns, como Freeman Dyson, do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, dizem que ele foi o maior cientista da segunda metade do século XX, mas há também Murray Gell-Mann, que o sr. também conheceu e trabalhava no Caltech. Para o sr., quem foi o grande cientista do período?
Leite Lopes - Concordo com Dyson. Feynman foi uma grande figura. Ele fez um novo fundamento matemático para a mecânica quântica, o "space-time approach", que ampliou seu alcance.
GZM - O sr. afirma em seu livro que as universidades privadas não são nada mais do que geradoras de diplomas. Em contrapartida, nas universidades públicas somente conseguem ser aprovadas, em geral, as pessoas que tiveram condições financeiras para cursar uma boa escola privada no primário e secundário. Como o sr. vê essa questão?
Leite Lopes - A educação no Brasil está de pernas para o ar. Inclusive, tradicionalmente, o governo gasta mais dinheiro com as universidades do que com o ensino básico. A história do Brasil precisava ser toda corrigida. Nunca tivemos políticos como Thomas Jefferson, que foi presidente dos Estados Unidos, e solicitou que no seu jazigo se escrevesse não que ele fora presidente, mas que ele havia fundado a Universidade de Virgínia. O que demonstra o nível desse homem. Qual o presidente brasileiro que fundou uma universidade? Nenhum, alguns até afundaram universidades. Castelo Branco invadiu a Universidade de Brasília quando estava sendo fundada. O nível de vida e intelectual do Brasil é muito baixo. Os empresários deveriam se dedicar às universidades. Nos Estados Unidos, pouco antes da crise de 1929, dois comerciantes de Nova Jersey venderam seu negócio, uma loja de departamento, e ganharam muito dinheiro.
Para agradecer à população, eles decidiram criar uma intituição que impulsionasse a educação. Eles pediram a Abraham Flexner - que havia investigado o nível de educação americana no início do século e chegara a conclusão de que ela era péssima, publicando um livro de grande influência, "The American College" - para criar essa instituição. Ele acabou fazendo o Instituto de Estudos Avançados de Princeton, que teve Albert Einstein como seu primeiro professor em 1934. Os milionários americanos começaram a competir. Há o Carnegie Institution, a Carnegie University. Rockefeller fez a Fundação Rockefeller e a Universidade Rockefeller. O sr. Stanford fez a Universidade de Stanford. Isso nunca aconteceu aqui. A Votorantim aí já deu algum dinheiro para a universidade? Não. Talvez seja mais fácil dar dinheiro a uma universidade americana do que a uma brasileira. Deveríamos começar tudo de novo.
Notícia
Gazeta Mercantil