É intenso o vai-e-vem de cadeiras de rodas no terceiro piso do Hospital das Clínicas (HC) da Unicamp, que concentra o atendimento de ortopedia e traumatologia. No final do extenso corredor fica o ambulatório de reabilitação sensorial e motora para pacientes com lesão medular, onde paraplégicos e tetraplégicos se submetem a uma longa rotina de exercícios. Ali, Valéria de Souza alegrou-se por sentir dor. Doeu a perna direita, insensível havia 11 anos, desde o acidente de automóvel num carnaval que terminou literalmente em cinzas. Depois da dor vieram os movimentos involuntários provocados por impulsos elétricos. Hoje, ela própria controla as articulações do joelho e tornozelo. Sua esperança é grande porque o mesmo processo está se verificando na perna esquerda.
Foi no mesmo ambulatório que a publicitária Júlia D' Amico de Almeida Serra, vítima de infarto medular durante uma cirurgia, voltou a pedalar uma bicicleta para frente e para trás. Sua primeira vitória tinha sido a de mexer os dedos do pé esquerdo e um músculo da coxa. E foi ali que o cirurgião vascular Marcos Figueira, com lesão medular provocada também por acidente de trânsito, conseguiu ficar de pé sobre uma perna, iniciando agora o trabalho com o outro membro inferior. Como Valéria, ambos são pacientes que no começo eram movidos a impulsos elétricos e agora executam movimentos voluntariamente. Justa recompensa pela determinação dessas pessoas, que ainda têm muitas batalhas pela frente.
"Por favor, evite qualquer tom sensacionalista", pede ao repórter o bioengenheiro Alberto Cliquet Júnior, que possui a carreira dedicada ao desenvolvimento de equipamentos e próteses para paraplégicos e tetraplégicos, além de outros dispositivos para pesquisas de ponta na área médica. Professor titular do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) e coordenador deste programa de reabilitação financiado pela Fapesp, Cliquet Jr. enumera as razões para se acautelar e não despertar no leitor a ilusão de que já possuímos a cura para a fatalidade. "O tratamento pode estar beneficiando os três pacientes, mas não aos demais. Ainda não compreendemos o mecanismo que permitiu a recuperação de movimentos voluntários por parte desses paraplégicos. Sendo incompreensível porque isso acontece - e porque acontece com uns e não com os outros -, estamos longe de poder afirmar que descobrimos a cura. Além disso, não temos condições de atender mais do que as 60 pessoas já em tratamento", justifica.
A estimulação elétrica neuromuscular, que visa a restauração de movimentos e da sensibilidade em membros lesionados, artificialmente, é uma técnica estudada desde os anos 1980. Grosso modo, o que se faz é ligar eletrodos controlados por computador em músculos dos membros paralisados, transmitindo pequenos choques que provocam uma contração muscular. As pernas, por exemplo, que antes permaneciam dobradas e imóveis, enrijecem e oferecem ao paciente firmeza para que se levante e dê alguns passos com o amparo do andador. Sensores instalados nos pés possibilitam que o toque no solo seja percebido numa parte saudável do corpo, acima do nível da lesão medular, como os braços no caso dos paraplégicos. Com a repetição dos exercícios, há pessoas que voltam a caminhar quase que normalmente com o auxílio de estímulos elétricos.
Terapêutica - Em meados dos anos 1990, percebeu-se que pacientes tratados com a estimulação elétrica neuromuscular estavam readquirindo movimento e sensibilidade nos membros afetados, voluntariamente, mesmo que de maneira pardal. "Quando se dá o diagnóstico de paraplegia ou tetraplegia completas, não significa que um milhão de neurônios foram seccionados. Trata-se de uma definição funcional, indicando que abaixo do nível de lesão o paciente não apresenta qualquer movimento ou sensação. Talvez o mal não seja tão completo e o indivíduo tenha preservado um potencial clínico que exploramos através da estimulação", pondera o pesquisador da Unicamp.
A medula espinhal é um feixe de nervos que vai da base do cérebro até a cintura. Lesões sérias na medula interrompem o envio de impulsos do cérebro para todas as partes do organismo abaixo da área danificada, e vice-versa. A paraplegia ocorre quando há uma secção nas vértebras toráxicas, lombares ou sacrais, imobilizando as pernas e comprometendo parcialmente o tronco. Na tetraplegia, a secção acontece nas vértebras cervicais, paralisando os quatro membros e o tronco. No exame chamado de potencial evocado, aplica-se um leve choque no membro paralisado e um aparelho indica se o estímulo atravessa a medula e chega ao cérebro. Quase sempre o estímulo pára na altura da espinha onde se deu a lesão, uma vez que os neurônios mortos não se regeneram.
Saber porque esse estímulo, às vezes, encontra um caminho alternativo pela medula e atinge o cérebro, restabelecendo a conexão entre as duas pontas do sistema nervoso central, é a dúvida que ainda impede os pesquisadores de hastear a bandeira da esperança para os lesados medulares. Há dois anos, quando a revista Pesquisa Fapesp publicou ampla reportagem sobre o trabalho coordenado por Alberto Cliquet Jr. na Unicamp, essa conexão era ainda precária. Festejava-se, por exemplo, que Marcos Figueira, com o decorrer dos meses de tratamento, passasse a exigir apenas quatro ao invés de oito eletrodos nas pernas para ficar de pé e dar alguns passos. Agora que ele, Valéria e Júlia já conseguem "caminhar" por sua própria cabeça, as conjecturas aumentam. "São resultados interessantes e comprovados, mas devemos deixar claro que eles acontecem com um paciente e com outros, não", insiste o bioengenheiro.
Tetraplégicos - Outro avanço importante contempla os tetraplégicos, antes impedidos de realizar o treinamento de marcha por causa da paralisia dos membros superiores. A fisioterapeuta Daniela Cristina Leite de Carvalho, que possui mestrado em bioengenharia na USP de São Carlos e faz doutorado na Unicamp, assiste esses pacientes durante os exercícios - cada um deles participa de duas sessões por semana, inicialmente por seis meses. Ela explica o funcionamento de uma esteira ergométrica equipada com suspensão dinâmica, onde alças sustentam o peso do corpo e permitem ao tetraplégico dar seus passos por meio da estimulação elétrica, sem forçar tronco e braços. "O objetivo dos exercícios é aumentar a massa corpórea desses pacientes, que geralmente ficam condenados ao sedentarismo. Depois de dezesseis meses da lesão medular, sua massa óssea se reduz para dois terços da original, tornando-os muito suscetíveis a fraturas. O treinamento melhora o condicionamento físico e, consequentemente, a habilidade nas atividades do dia-a-dia", afirma.
Segundo Cliquet Jr., a reversão da osteoporose pode parecer pouco importante para quem provavelmente permanecerá em cadeira de rodas, mas lembra que a simples transferência do paciente para uma maca ou para a esteira pode levar a fraturas. "O aparelho também evita o risco decorrente da siringomielia pós-traumática, patologia que afeta 1 em 4 tetraplégicos, em que o líquido raquidiano ocupa o espaço do neurônio morto na medula. Se o indivíduo fizer um esforço muito grande para ficarem peou usando os braços num andador, esse líquido pode subir por pressão hidrostática e matar neurônios acima da lesão", esclarece.
Notícia
Jornal da Unicamp