Alguma vez você, ou alguém que você conhece, sofreu um acidente de trânsito com um carro e depois passou a ter medo de outros carros e veículos? Ou talvez você, ou alguém, foi assaltado em um local e passou a evitar aquele local e locais semelhantes por sentir medo? Essas situações e sentimentos são realmente muito ruins, mas bastante comuns. O que acontece é o que chamamos de generalização do medo, em que uma resposta ocorre para estímulos não relacionados a uma aprendizagem direta de medo, mas formalmente semelhantes a um estímulo diretamente condicionado.
Muitos estudos encontraram evidências desse tipo de generalização para propriedades formais dos estímulos, como cores, e também para propriedades conceituais, como entre palavras semanticamente relacionadas. Além de respostas de medo, podem ser generalizadas respostas de evitação, essenciais no estabelecimento e manutenção de transtornos de ansiedade, ainda que esse comportamento venha recebendo pouca atenção em pesquisas dessa natureza.
Interessados em demonstrar a generalização do medo, da evitação e da expectativa de apresentação de um estímulo aversivo, Boyle, Roche, Dymond e Hermans (2016) utilizaram pares de estímulos semanticamente relacionados para realizar o experimento apresentado a seguir. Nesse experimento, feito com 28 estudantes universitários, choques foram utilizados como estímulos incondicionados aversivos, que foram considerados incômodos, porém não doloridos para eles.
Na primeira fase do experimento foi realizado um treino de medo condicionado, em que algumas palavras foram pareadas com uma aplicação de 0,5 s de choque. As palavras utilizadas no condicionamento foram, em tradução livre, “Caldo”, “Balela” e “Lacrimejar” (do inglês Broth, Fib e Weep), que foram seguidas de choque (CS+), e “Auxiliar”, “Indisposto” e “Briga” (do inglês Assist, Ill e Brawl), que nunca foram seguidas de choque (CS-). Essas palavras e seus pares que foram utilizados na fase seguinte são avaliadas como altamente relacionadas em associação livre, segundo base de dados da University of South Florida Word Association, Rhyme and Word Fragmentation Norms.
Após o treino com as apresentações das palavras e aplicações de choque, iniciou-se a Fase 2. Nela, os participantes foram avisados que poderiam evitar os choques pressionando a barra de espaço do teclado do computador quando as palavras aparecessem na tela. As mesmas palavras foram apresentadas novamente, por mais 10 vezes cada. Depois dessa etapa, um teste de generalização foi iniciado sem avisos ao participante. Nesse momento, as palavras utilizadas anteriormente continuavam a ser apresentadas, mas foram intercaladas com palavras semanticamente relacionadas que nunca foram seguidas de choque. As palavras semanticamente relacionadas àquelas seguidas de choque na primeira fase foram, em tradução livre, “Sopa”, “Mentira” e “Chorar” (do inglês, Soup, Lie e Cry) (denominadas GCS+ no estudo), e as relacionadas às não seguidas de choque foram “Ajudar”, “Doente” e “Luta” (do inglês, Help, Sick e Fight) (denominadas GCS- no estudo). Por fim, os participantes avaliaram suas expectativas em receber choques quando pressionavam ou não a barra de espaços, em uma escala de 5 pontos, em que 5 significava “definitivamente esperava receber um choque” e 1 significava “definitivamente não haveria choque”.
Foi investigado pelos autores: (1) o índice galvânico da pele dos participantes, medido por eletrodos colocados em suas mãos; (2) a taxa de respostas de evitação deles nas etapas de treino e teste; e (3) a expectativa deles em receber choques ou não quando emitiam respostas de evitação. Dentre os resultados, foi observado que as medidas eletrodermais dos participantes foram significativamente maiores para as palavras seguidas de choque (CS+) do que para as palavras não seguidas de choque (CS-) na Fase 1, o que demonstra a efetividade do pareamento realizado. Também foram observadas diferenças entre CS+ e CS-, e entre as palavras semanticamente relacionadas GCS+ e GCS-, na Fase 2, mas não houve diferenças entre CS+ e GCS+, ou seja, as apresentações do estímulo diretamente pareado com o choque e aquele semanticamente relacionado tiveram efeitos semelhantes sobre a condutância da pele dos participantes.
Quanto a evitação, no treino os participantes emitiram mais respostas para CS+ do que para CS-, ou seja, aprenderam a evitar os estímulos relacionados ao choque e a não-evitar os estímulos que não eram seguidos de choques. Sobre a generalização dessas respostas, a evitação foi maior para os estímulos do grupo CS+ e GCS+ do que para CS- e GCS-. Isso indica que a evitação e a não-evitação diretamente aprendidas anteriormente foram mantidas nessa etapa, e em relação aos estímulos semanticamente relacionados, foi visto que a generalização emergiu como esperado, sendo maior para as palavras semanticamente relacionadas à CS+ e menores para as relacionadas à CS-. No entanto, é importante apontar que os estímulos do grupo GCS+ produziram menores taxas de evitação do que os diretamente condicionados (CS+), o que é bastante comum na literatura sobre generalização, em que não é esperado a ocorrência de uma resposta tão robusta diante de um estímulo apenas testado, quanto diante daquele diretamente aprendido.
Quanto a avaliação da expectativa de receber choques, ela foi maior para CS+ e GCS+ se comparado a CS- e GCS-, quando o participante avaliou o que esperaria que acontecesse caso não emitisse a resposta de evitação. Ou seja, como esperado, o participante tinha expectativa de receber choques diante dos estímulos diretamente pareados com choque na primeira fase e daqueles semanticamente relacionados, mas não diante dos estímulos não pareados com choque e dos relacionados, caso não pressionasse a barra de espaço. Por outro lado, paradoxalmente, quando o participante avaliou o que esperaria que acontecesse caso emitisse a resposta de evitação, a expectativa de receber choques foi maior para os estímulos não pareados diretamente com choques, CS-, e os semanticamente relacionados, GCS-. Isto poderia ser explicado pela história que os participantes tiveram de receberem um choque por não emitirem a resposta correta de evitação diante de CS+. Em decorrência disso, eles poderiam esperar também receberem um choque ao não emitirem a resposta “correta”, de não-evitação, para o CS-, assim como para o GCS- que é semanticamente relacionado.
Concluindo, o estudo buscou demonstrar em laboratório um processo que ocorre com frequência em nosso dia a dia, através da linguagem, ou seja, da generalização. Sua importância se dá pela demonstração da generalização para palavras semanticamente relacionadas e por avaliar o comportamento de evitação neste paradigma. Nesse sentido, podemos dizer que o que a linguagem e o medo têm em comum é que a primeira é importante para a propagação do segundo. Assim, se alguém sente medo diante da palavra anfíbio e diante da palavra sapo, por exemplo, é possível que esse sentimento esteja sendo propagado via generalização. Como a generalização é importante para a propagação de comportamentos, como o de evitação, e a evitação se apresenta como um comportamento central em transtornos de ansiedade, estudos como esse devem continuar avançando na tradição analítico comportamental.
Para saber mais, veja o texto na íntegra:
Boyle, S., Roche, B., Dymond, S. & Hermans, D. (2016). Generalisation of fear and avoidance along a semantic continuum. Cognition and Emotion, 30, 340 – 352.
Imagem:
Heloísa Ribeiro Zapparoli, graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de São Carlos e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo no LECH- Laboratório de Estudos do Comportamento Humano-UFSCar