ARTIGO ORIGINAL
O que a ciência brasileira perdeu com a repressão durante a ditadura?
Agência Pública
7 de abril de 2024
Autoria: Sérgio Barbo
“Se é verdade que não há fronteiras para a ciência, também é exato que há fronteiras para os cientistas.” A declaração, feita em de 24 de abril de 1964, poucos dias após o golpe militar, pelo ministro da Saúde Raymundo de Moura Britto ao jornal Correio da Manhã, disfarçava uma ameaça àqueles cientistas tidos como “subversivos” e demonstrava que medidas autoritárias ditariam as regras para a ciência no regime de exceção.
Professores e pesquisadores sofreram prisões, demissões, aposentadorias, censura de publicações, cancelamento de bolsas e de contratações. Alunos foram proibidos de ingressar em cursos e estágios, enquanto projetos e grupos de pesquisa foram desmantelados.
“Muitos pesquisadores foram trabalhar no exterior, outros ficaram, mas produziram menos do que poderiam”, descreve à Agência Pública o professor de história da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Rodrigo Patto Sá Motta, autor do livro As universidades e o regime militar.
Dos 61 cientistas com depoimentos publicados no livro Cientistas do Brasil, editado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) em 1998, mais da metade foi atingida diretamente por ações ditatoriais.
POR QUE ISSO IMPORTA?
O legado da ditadura militar segue até hoje nas mais variadas áreas da nossa sociedade. A perseguição a cientistas levou a uma fuga de cérebros e atraso em áreas-chave para o desenvolvimento do país, como física e medicina
Para o historiador Daniel Elian, os efeitos da repressão ainda são sentidos em algumas lacunas e desafios persistentes no cenário científico do Brasil. “Não foram poucos aqueles que saíram do país pela perseguição e instabilidade do ambiente científico. A fuga de cérebros em busca de ambientes mais propícios para o desenvolvimento de suas pesquisas tem reflexos também na formação de novos cientistas. Além disso, o isolamento político do Brasil durante o período dificultou a colaboração científica internacional.”
Presa durante a ditadura por conta de sua militância estudantil, a historiadora Janice Theodoro, ex-coordenadora da Comissão da Verdade da Universidade de São Paulo (USP), concorda. Segundo ela, as áreas de medicina e saúde foram especialmente afetadas. E essa repressão teve um impacto de longo prazo na maneira como essas duas áreas se desenvolveram nos anos seguintes. “Pretendia-se o desmonte da saúde pública, para favorecer o setor privado.”
Já a jornalista científica Mariluce Moura, ex-assessora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e criadora da revista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), acredita que a ciência brasileira perdeu cérebros brilhantes em todas as áreas científicas, mas em especial na educação, na filosofia e nas humanidades em geral. “Mais do que isso, a ditadura levou as instituições de ensino e pesquisa e as agências de fomento do país a se fecharem mais e mais para se protegerem.” Isso levou, segundo ela, a uma perda de visibilidade na imprensa sobre nossa produção acadêmica. “Vide todas as matérias saudando César Lattes nos anos 1940 ou cobrindo a vinda de Einstein ao Brasil, vide as notícias de ciência no Estadão até os anos 1950”, diz ela. “[A ciência] perdeu inteiramente a conexão com a base da sociedade.” Ex-militante da Ação Popular Marxista Leninista (APML), presa e torturada em 1973, Mariluce foi demitida pelo MEC de seu cargo de professora na Universidade Federal da Bahia (Ufba), em 1975.
Estima-se entre 800 e mil o número de pesquisadores perseguidos durante o período, segundo a Comissão Nacional da Verdade.