Cientistas e pesquisadores estudam pessoas que não foram infectadas mesmo convivendo com quem pegou Covid-19. Com descoberta, é possível criar uma proteção superior à já oferecida pelas vacinas“Mil cairão ao teu lado, dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido”. O trecho do Salmo 91 não sai da cabeça de André Baitello, assessor especial da Secretaria Municipal de Saúde de Rio Preto. Até o momento, ele passou imune por mais de dois anos de pandemia e não foi infectado pelo coronavírus, mesmo com colegas de trabalho e familiares tendo sido contaminados. A invulnerabilidade à Covid-19 é atestada por 11 exames feitos, entre PCR e antígeno, realizados durante diferentes épocas.
“Pegaram minha mulher, meus dois filhos e até meu sogro que frequenta bastante minha casa. Eu fiz exames quando eles positivaram, inclusive quando tive sintomas gripais, mas não deram nada. Não sei como”, afirma o médico.
Não é possível ter certeza, mas Baitello pode fazer parte do grupo que tem sido chamado de “superimunes”. São pessoas que não foram infectadas mesmo convivendo de perto com pacientes que tiveram o vírus. Elas têm sido alvo de pesquisas de cientistas mundo afora, afinal podem ajudar a criar uma proteção superior à já oferecida pelas vacinas. A principal questão atual é qual fator explica a imunidade. Células protetoras, mutações genéticas e até grupo sanguíneo são apontados como possíveis respostas. Pesquisas apontam que os “superimunes” representam 2% da população.
Durante a alta de casos de coronavírus, Baitello trabalhou no Hospital de Base de Rio Preto, que como todo centro de saúde tem alto risco de contaminação. Viu colegas de profissão, como o secretário de Saúde, Aldenis Borim, serem infectados, mas ele escapou.
Quem também quer saber porque a Covid-19 não consegue lhe atingir é o advogado Marcelo Domingues de Andrade, 43 anos. Por amor, ele não quis sair um minuto sequer do lado da esposa atingida pelo vírus e, mesmo assim, não foi contaminado.
“Fiz vários exames de sangue e não deram nada. Eu e minha mulher temos o mesmo estilo de vida e alimentação. Queria saber porque ela pegou e eu não”, questiona o advogado.
A comerciante Cássia Silva Soares de Oliveira, 45 anos, também entra para a lista dos moradores que fazem rotineiramente testes, mas não pegaram a doença, que já matou mais de 3 mil pessoas em Rio Preto.
Enquanto o marido e a filha tiveram de ficar internados para se tratar dos efeitos do coronavírus, em março de 2020, ela e o filho de 28 anos testaram negativo em sucessivos exames de laboratório. “Eu tratei do meu marido e da minha filha com coronavírus. Percebi que de alguma forma éramos imunes, mas mesmo assim fiquei com medo porque perdi parentes para esta doença”.
Em abril do ano passado, o Centro de Estudos do Genoma Humano e de Células-Tronco (CEGH-CEL), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da Fapesp, iniciou o mapeamento genético do sistema imunológico de pessoas com resistência ao SARS-CoV-2.
Um dos coordenadores do estudo é o doutor em biologia Mateus Vidigal, que acompanha os dados de saúde de 86 casais, em que apenas uma pessoa do lar, marido ou a mulher, pegou o vírus.
“Desde o início da pandemia, tomamos conhecimento de pessoas que tiveram contato com indivíduos infectados e que não se infectaram apesar do contato próximo. Acreditávamos que essas pessoas seriam resistentes de alguma forma ao coronavírus e a partir de então resolvemos estudar porque algumas pessoas são infectadas e outras não, apesar de terem sido igualmente expostas ao vírus”, diz Mateus.
Na primeira etapa da pesquisa, foram comparados os indivíduos infectados com os indivíduos resistentes, onde foi percebido que havia uma diferença em alguns genes responsáveis pela resposta imune. Nas pessoas resistentes, havia uma maior frequência de genes que contribuem para a ativação mais eficiente de um tipo determinado de glóbulo branco, as células Natural Killers (NK), que poderiam eliminar o vírus de maneira rápida.
Por outro lado, as pessoas infectadas têm uma resposta mais tardia das células NK, que favorecem a infecção e o desenvolvimento de sintomas. As NKs são as primeiras barreiras de defesa do nosso organismo contra uma infecção viral, explica o pesquisador.
“Agora estamos investigando se os indivíduos que não foram infectados na época ainda permanecem ‘resistentes’, mesmo com o surgimento e alta propagação de novas variantes do coronavírus, como a Ômicron”, afirma o doutor em biologia.
Jesem Orellana, epidemiologista da Fiocruz-Amazônia, aposta na pesquisa genética para descobrir o segredo da barreira natural. “Muitos têm defendido que algumas características genéticas podem fazer com que as células chamadas NK sejam responsáveis por aumentar a resposta de primeira linha, logo no primeiro contato com o coronavírus”.
O poder de infecção do coronavírus e outras doenças contagiosas depende dos efeitos delas no corpo humano, após o primeiro contato, para conseguir derrubar o sistema imunológico das pessoas. Quando nesta primeira etapa sua ação é barrada, a contaminação não acontece. “Há pessoas que excepcionalmente apresentam estes tipo de reação”.
Pesquisas em andamento
Descobrir por que parte da população é resistente ao coronavírus é o trabalho do infectologista e diretor clínico do Grupo Fleury, Celso Granato, que participa das pesquisas em andamento para desvendar a superimuniologia destas pessoas.
“É muito difícil a gente saber. São questões que dependem muito de testes de biologia molecular e genética, que são muito caros, mas o que acontece não é comum”, diz o infectologista.
Celso diz que as pesquisas em andamento levam em conta o histórico de outras pandemias para verificar um tipo de comportamento padrão que possa explicar os hiperimunes.
“O vírus é um ser muito simples, não consegue viver sozinho. Ele precisa entrar numa célula para ter alimentos. Para isso ele tem uma chave para entrar na célula, e a partir daí ter controle. Acontece que nem todo mundo tem essa chave igual. Só que isso acontece com pequena parte da população”.
Outra linha de pesquisa em andamento tenta checar se as pessoas resistentes têm tipos raros de ACE2, um tipo de receptor usado pelo vírus para entrar nas células que a proteína spike do coronavírus não pode aderir.
Análises genéticas recentes revelaram que algumas pessoas possuem mutações genéticas que fazem com que seu receptor ACE2 não seja funcional, portanto, têm uma redução do risco de infecção.
As diferenças na expressão de proteínas entre as pessoas são conhecidas como polimorfismos e essas descobertas são valiosas.
O diretor do Grupo Fleury tem afirmado que há pesquisas que tentam ver se tem relação entre a imunologia e os tipos sanguíneos das pessoas, mas ainda não há um padrão para confirmar.
Porém, Jesem Orellana, epidemiologista da Fiocruz-Amazônia, defende muito rigor na pesquisa antes de classificar uma pessoa como imune. “Tem gente que diz nunca ter pego a doença, mas não fez os testes corretamente. Há um tempo necessário para aguardar após a infecção. Além disso tem que acompanhar o paciente, com novas testagem, para confirmar se de fato ele é super resistente ao vírus”. (MAS)
Homens transmitem mais o coronavírus
Celso Granato: é preciso proteger os mais suscetíveis
Jesem Orellana: na gripe espanhola já houve quem não se infectou
Pesquisa do Centro de Estudos sobre o Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL) da USP, feita entre julho de 2020 e julho de 2021 e realizada com 1.744 casais adultos, aponta que os homens são os primeiros a serem contaminados, para depois transmitem para as mulheres.
Segundo o levantamento epidemiológico, os homens são transmissores mais eficientes do coronavírus do que as mulheres, independentemente do uso de máscaras de proteção.
A explicação preliminar é de que os indivíduos do sexo masculino têm carga dez vezes maior na saliva do que as mulheres, mas a razão porque isso acontece inda não foi desvendado pela pesquisa, que ainda não foi concluída.
Contaminados
Do outro lado da pandemia, há pessoas que integram o grupo mais frágil da sociedade, aquelas que foram infectadas mais de uma vez pelo vírus.
Segundo o infectologista Celso Granato, o vírus da Covid-19 consegue ter a chave para entrar nas células das pessoas com baixa imunidade. Dentro deste grupo estão diabéticos, fumantes e obesos.
“Quando essas pessoas pegam Covid, o vírus se multiplica por dez e causa mais inflamações no corpo. É isso que mata a pessoa, porque ela morre de hiper inflamação. Por isso, temos que preservá-los", diz o infectologista.
Há ainda pessoas que, apesar de estarem vacinadas, inclusive com doses de reforço, não desenvolvem imunologia e são infectadas até três vezes pelo vírus, em cada ocasião, por uma variante diferente.
História
Com taxa de mortalidade de 6 a 8%, a gripe espanhola foi a primeira grande pandemia registrada. A doença causou morte de 17 milhões de pessoas em todo o mundo, no período de janeiro de 1918 a dezembro de 1920, além de infectar mais de 500 milhões de pessoas do mundo
Jesem Orellana, epidemiologista da Fiocruz-Amazônia, afirma que durante a pandemia da gripe espanhola havia registro de pessoas, que mesmo expostas ao vírus, não desenvolveram a doença.
"Na verdade este tipo de situação faz parte da literatura médica. Isso acontece com outros tipos de doenças. Tem gente resistente à dengue, pneumologia, hanseníase, que não desenvolve a doença, apesar do contato", diz o pesquisador.
Glossário da Covid-19
Coronavírus - Família de vírus com forma semelhante a uma coroa, que causa infecções respiratórias leves, moderadas ou graves
Covid19 - Infecção respiratória aguda causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, potencialmente grave, de elevada transmissibilidade e de distribuição global
Imunização
Processo de adquirir resistência a doenças infecciosas associadas a agentes epidemiológicos de modo natural ou artificial
Grupo de risco
Pessoas idosas, gestantes, puérperas ou com doenças coexistentes ou adicionais que podem agravar o quadro clínico de indivíduos afetados pela Covid-19
Hipóteses dos invulneráveis à Covid19
Super sistema imunólogico - Ao perceber a entrada do vírus no corpo, as moléculas denominadas “MIC-B”, filetes presentes no material genético se multiplicam, o que incentiva os anticorpos chamados de Natural Killers (NK) a eliminar o vírus
Tipos sanguíneo - Os indivíduos de tipo sanguíneo O apresentaram cerca de
13% menos probabilidade de testar positivo para Covid-19 do que os do tipo A, B ou AB, conforme pesquisa da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá
Mutação genética - Pessoas teriam a invulnerabilidade ao vírus porque são descendentes de pessoas que sofreram mutação genética após sobreviverem a infecções de outras pandemias
A comerciante Cássia Silva Soares de Oliveira (loira), com a filha Leticia: a mãe cuidou da filha e ainda assim não adoeceu (Johnny Torres 11/6/2022)
André Baitello, assessor especial da Secretaria Municipal de Saúde de Rio Preto, escapou da Covid até agora (Guilherme Baffi/Arquivo)