A frente de Manuela, Mário de Andrade criou muitas de suas histórias-tantas consagradas; outras, ao que se descobriu postumamente, restritas aos manuscritos inacabados, às rasuras de canto de papel. O que pouco se conhece é o próprio processo de criação da mente plural do autor, o habitat inicial de suas pesquisas e enredos. Ou melhor, se conhecia. O Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP acaba de lançar a revista eletrônica Marioscriptor (www.ieb.usp.br/marioscriptor),projeto temático da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), realizado em parceria com a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), que transformou a distância do público aos manuscritos, notas, cartas e análises críticas acerca do escritor equivalente a meros cliques. A revista é semestral e estão previstas pelo menos mais duas edições.
O projeto é fruto de um trabalho interdisciplinar que data oficialmente de 2006, coordenado pela professora Telê Ancona Lopez e denominado "Estudo do processo de criação de Mário de Andrade nos manuscritos de seu arquivo, em sua correspondência, em sua marginaba e em suas leituras". A partir da análise de 102 documentos em posse do IEB, dos quais grande parte é constituída de obras inéditas, o grupo de pesquisadores se lançou à tarefa de desbravar como se deu a organização das invenções de Mário, numa tentativa de recuperar o trajeto de sua criação. "A revista vem representar, nesse contexto, um veículo de difusão do projeto do IEB e da obra de Mário de Andrade que transcende tais conhecimentos aos limites da Universidade", afirma o coordenador associado do projeto, professor Marcos Antonio de Moraes.
Em Marioscriptor, o leitor encontra um catálogo analítico dos manuscritos literários, além da produção acadêmica a respeito destes. Os pesquisadores interessados podem examinar o manuscrito no fac-símile e entender os exames e críticas a partir dos textos publicados no dossiê. "O manuscrito traz uma intimidade que apenas a reprodução textual não permite. Por isso, pensamos desde o início em uma revista eletrônica que disponibilizasse o escaneamento dos fólios", explica Telê.
Tatiana Longo Figueiredo, editora assistente da revista, completa: "Os detalhes dos documentos - papel, tinta, formato, estado - dizem tanto sobre eles quanto seu conteúdo escrito. Alguns documentos estão amassados, indicando que aquele papel havia sido jogado no lixo, que havia sido descartado. Eis aí um dado importante para o pesquisador interessado em recriar os caminhos criativos".
O percurso de análise disponível em Marioscriptor passeia pelos diversos suportes das ideias de Mário. Constante revisor de si mesmo e de suas obras, Mário fazia de sua criação um movimento contínuo. Dessa maneira, mesmo após sua morte, é possível encontrar um arquivo pessoal repleto, fonte que inspira cogitações sobre a origem de suas obras e propicia o cruzamento de dados. Um exemplo do perfeccionismo e revisionismo do autor são os chamados "exemplares de trabalho" - manuscritos em textos impressos de livros ou periódicos, nos quais o escritor reescrevia trechos e rabiscava anotações referentes, conduzindo a novas versões de suas obras. Não eram somente correções, mas descobertas e/impressões que inferia aos seus projetos. "A mente de Mário é um prisma e, no que se refere à sua obra, não existem versões definitivas. Elas estão em flexível mutação", afirma Telê.
Também polígrafo, outra vertente do trabalho guardado no arquivo envereda pelo ramo da música. Partituras anotadas, cartas a compositores e sua parceria nas óperas Malaxarte e Café, inacabada, compõem o acervo. Para Flávia Toni, coordenadora adjunta responsável pelos manuscritos musicais, "Mário é de uma geração na qual os homens buscavam uma relação entre a palavra e a música. Daí seu encantamento com os trovadores e improvisadores, músicos e poetas como ele". Contudo, é nas cartas que relata seus saberes e pesquisas na forma viva do depoimento. "A carta é a memória de criação na fala do sujeito, no diálogo com o outro, e revela como ele enxergava seu labor, uma espécie de diário de produção", explica Moraes.
Marginália - A leitura anotada na marginália dos livros demonstra o Mário leitor e as referências que compunham parte de seu repertório cultural. "A marginália compreende crítica e empreende um diálogo unilateral, mas que influencia posteriormente a criação de sua autoria", relata Telê.
Para Mário, finaliza a professora, "a criação não é uma espinha dorsal, mas uma raiz que se abre e demonstra o modo generoso como ele encara o ser humano". Poeta, ficcionista, crítico e historiador das artes em geral, cronista, musicólogo, correspondente em contato com os nomes mais expressivos do campo cultural de sua época, pesquisador do folclore do Brasil, bibliófilo, professor, intelectual voltado para projetos culturais renovadores, sobretudo quando dirigiu o Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, Mário de Andrade foi tanto que suas atividades constituem parágrafo inteiro. Talvez a melhor definição para o autor seja a que ele, inspirado nos ditos de Gonçalves Dias, fez de si mesmo: "eu sou um tupi rangendo um alaúde".
A revista Marioscriptor, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, pode ser acessada emwww.ieb.usp.br/marioscriptor