O que fazem os trabalhadores brasileiros para que o país vá para frente? O portal do Ministério do Trabalho e Emprego, na Internet, traz uma página com a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO 2002), onde é possível saber num clique que atividades exerce um engenheiro aqüicultor, por exemplo. Ali estão descritas 596 famílias ocupacionais no Brasil, cobrindo 2.422 ocupações e 7.258 títulos sinônimos. O catador de papel agora tem seu ofício reconhecido, assim como a prostituta, com todos os seus sinônimos — meretriz, quenga, messalina, michê — e cuja atividade é "batalhar programas sexuais em locais privados, vias públicas e garimpos".
Fruto de um levantamento nacional realizado por pesquisadores da Unicamp, Fipe/USP, UFMG e Senai, a CBO foi atualizada depois 20 anos para referenciar estatísticas administrativas e censitárias nacionais e regionais, tornando-se instrumento estrategicamente importante também para ajudar a integrar políticas públicas, sobretudo de intermediação de mão-de-obra. A CBO atende solicitação da OIT (Organização Mundial do Trabalho), que estimula e estabelece parâmetros para este trabalho de classificação, buscando elementos comparativos e confiáveis entre países-membros que permitam um mínimo de diálogo internacional.
Em duas décadas, muitas profissões surgiram, outras passaram por mudanças de conteúdo e de denominação, e outras que sempre existiram somente agora são reconhecidas. "Ocupações como as do catador de papel e da prostituta nunca foram descritas em classificações na América Latina. Ignorá-las faz com que esses trabalhadores fiquem totalmente desprotegidos. A CBO não lhes assegura proteção, mas oferece visibilidade e a chance de serem contemplados em políticas públicas", afirma a professora Liliana Rolfsen Petrilli Segnini, da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, que coordenou a pesquisa brasileira nas áreas das Ciências e das Artes.
"Conhecer, sistematizar, classificar o mercado de trabalho de um país significa elaborar parâmetros que informam relações econômicas, políticas e sociais. Trata-se de uma das políticas públicas elaboradas pelo Estado, desde 1971, no processo de consolidação do mercado de trabalho urbano e industrial no país. A CBO 2002 capta as mudanças ocorridas na última década e re-elabora os parâmetros referidos. As classificações de ocupações são compreendidas como formas de representar uma sociedade ou um país, considerando em sua elaboração parâmetros tecnológicos e sociais, tais como formação profissional, qualificação, representação sindical, relações e organização do trabalho, em suas diferentes etapas e processos", afirma.
Segundo a professora, um grande diferencial em relação à CBO anterior, divulgada em 1982, está no método de captação de dados. Se, antes, recorria-se a um observador para acompanhar e descrever as atividades de um profissional, agora os próprios profissionais foram chamados para explicar o que fazem. "Este método canadense — Dacum — parte do princípio de que só quem realiza a atividade pode descrevê-la. No caso dos bailarinos, reuniu-se um comitê de doze representantes escolhidos dentro e pelo próprio meio artístico — bailarinos, ex-bailarinos, estudiosos — que se reuniram por dois dias para definir atividades e sub-atividades realizadas no exercício da profissão. No terceiro dia, a discussão foi feita também com as instituições de formação profissional, sindicatos patronais e de trabalhadores", informa.
Para cumprir com sua parte no levantamento encomendado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, a equipe da Unicamp foi composta por 16 professores e pesquisadores, doutorandos, mestrandos e profissionais já graduados, que foram treinados pela Capra, instituição canadense que assessorou o MTE na aplicação do método acima mencionado. O trabalho atingiu 1.300 profissionais das Ciências e das Artes, 306 associações representativas das categorias, 180 instituições de formação profissional e 208 empresas. Ao final, chegou-se a 250 ocupações, um leque que engloba desde professores de nível superior, profissionais das ciências jurídicas, comunicadores, artistas, dançarinos, músicos, religiosos, técnicos de nível médio e trabalhadores administrativos do setor de espetáculos, até profissões ameaçadas de extinção, como a de domadores de animais de circo.
Polêmica — Liliana Segnini afirma que a CBO 2002 cumpriu o propósito de classificar e caracterizar as ocupações existentes no Brasil, tornando-se instrumento relevante para o aprofundamento de questões como políticas de intermediação de mão-de-obra, emprego e desemprego, saúde ocupacional, migração e temas afins. A coordenadora da pesquisa da Unicamp adverte, porém, que os enunciados enxutos e precisos sobre as ocupações brasileiras, disponibilizados no site do MTE, servem como referência, mas não como "camisas de força" para a organização de carreiras, processos de trabalho em empresas ou de currículo em instituições de formação profissional: "É necessário compreender as especificidades regionais e locais".
A utilização dos dados da CBO com tais objetivos é alvo de muita polêmica. "A classificação francesa, denominada Rome, tem sido utilizada para organizar carreiras em empresas ou mesmo currículos, mas esta não é a realidade brasileira", enfatiza. "Não podemos desfocar o objetivo desta descrição. A proposta de elaborar um currículo para formar um jornalista, a partir simplesmente do que ele faz no dia de hoje, é uma visão muito redutora do que seja formação, que tem um sentido muito mais amplo, mobilizando conteúdos mais profundos", pondera. A professora Aparecida Neri de Souza, também integrante da equipe da CBO, acrescenta que a perspectiva da formação volta-se para o cidadão e trabalhador que se pretende formar. "A CBO é um instrumento que pode informar novas políticas em educação e trabalho, articulando Ministérios do Trabalho e da Educação", complementa.
Liliana Segnini argumenta que todas as discussões para se chegar aos mapas descritivos foram bastantes ricas e oferecem uma fonte inesgotável para pesquisadores em sociologia do trabalho e sociologia da educação, por exemplo. Cada profissão possibilita a elaboração de uma pesquisa, de uma tese. A própria pesquisadora e Neri de Souza já desenvolvem projeto temático com financiamento aprovado pela Fapesp — "Trabalho e formação no campo da cultura: professores, músicos e bailarinos" — para seguir nesta linha de pesquisa, com duplo enfoque metodológico: a análise comparativa internacional entre Brasil e França, e relações de gênero.
Notícia
Jornal da Unicamp