Se voltasse ao Brasil para as celebrações dos 500 anos do descobrimento, Cabral exultaria de alegria ao reconhecer, no sistema de credenciamento de universidades, a sobrevivência do regime das capitanias hereditárias em sua forma mais pura.
Com efeito, o Brasil possui um sistema sui generis de ensino superior. É o único fc país do mundo que tem a universidade de ensino, pesquisa e extensão como o modelo ideal de instituição de ensino superior. Esse modelo serve de parâmetro para todo o resto. Na Constituição, ainda se diz que essas três funções são indissolúveis. Esse exotismo tropical é complementado pela legislação, que atribui às chamadas universidades a prerrogativa de abrir e fechar cursos. A isso, no Brasil, se chama de autonomia.
Essa visão ainda implica que, sendo a Universidade o modelo ideal, as demais instituições (chamadas "isoladas") são consideradas imperfeitas. Pela lei da terra, devem caminhar para tornar-se universidades. Até lá, permanecem sob a tutela do estado, já que são menos do que cidadãs. É como se toda microempresa tivesse por vocação tomar-se uma IBM.
Na verdade, como sabemos, tudo não passa de um grande faz-de-conta. É inegável que o país possui um elenco de excelentes instituições de ensino superior, inclusive excelentes núcleos de pesquisa e excelentes universidades. Isso deve ser preservado e estimulado. Mas dentre a quase centena e meia de instituições chamadas universidades, as que realmente fazem pesquisa significativa se contam nos dedos. As demais, fazem de conta. Não há nada errado numa universidade não fazer pesquisa. Mas por que as nossas "universidades" precisam fazer de conta que fazem pesquisa, e proclamar, brandindo a Constituição, que ensino, pesquisa e extensão são indissociáveis?
E de se indagar de onde vem essa idéia, e quem se beneficia dela. Não é certamente o país. Todo país desenvolvido educacional-mente concentra a atividade de pesquisa em algumas poucas instituições especializadas, sejam elas universidades ou não. No mundo, a principal missão das instituições de ensino superior é formar pessoal de alto nível, e não fazer pesquisa. Também não são os alunos os maiores beneficiários - há evidências de que instituições voltadas para ensino costumam preparar melhor os alunos, inclusive para carreiras científicas, do que instituições cuja vocação primordial é a pesquisa. Isso também se verifica no Brasil.
Então, quem ganha? Primeiro, ganham os donatários das capitanias hereditárias, ou seja, as instituições que, cumprindo os requisitos formais, lograram obter a "bandeira" de universidade. Além do privilégio da autonomia, elas ganham vantagens sobre as chamadas instituições isoladas, que precisam de alvará para qualquer mudança ou expansão. Segundo, ganham com essa situação certos interesses corporativos - ao formalismo credencialista brasileiro subjaz a idéia de que a titulação dos docentes e o regime de dedicação estão associados à produção de pesquisas e melhor qualidade do ensino - e não vice-versa.
Neste momento o Congresso Nacional examina um Projeto de Emenda Constitucional que tem a ver com o futuro do ensino superior no Brasil. O Poder Executivo, apesar de toda a experiência e da evidência em contrário, parece inclinado a manter, no artigo 207, o exotismo tropical pelo qual o Brasil continua a ser o único país do mundo em que, por definição (e somente no papel), toda universidade oferece ensino, pesquisa e extensão de forma indissolúvel. Este modelo vem entravando a expansão ao ensino superior, restringindo a entrada de novos atores, elevando preços e não há nenhuma evidência de que contribui parada qualidade. Então, não custa perguntar, por que mantê-lo?
Enquanto Cabral exulta de alegria no túmulo, o resto do mundo desenvolvido expande seus sistemas de ensino superior das formas mais variadas, consciente de que a educação é a chave de entrada no século XXI.
* Consultor, ex-secretário executivo do Ministério da Educação e Cultura
Notícia
Jornal do Brasil