Era uma época de casas simples, caiadas de branco por dentro e por fora, sem forro no teto, fogão a lenha na cozinha, de piso de cimento com vermelhão. Não havia garagens, porque automóveis eram só para gente rica. Mas os quintais, ah! Esses eram grandes, pois os terrenos ainda eram fartos e baratos.
O tamanho dos quintais fazia toda a diferença por essa época. Influía muito na condição de vida das famílias. Naquele espaço se poderia garantir e retirar parte do sustento familiar numa época em que não havia supermercados, só armazéns, que forneciam basicamente sal, banha, arroz, feijão, carnes salgadas, gêneros básicos para a sobrevivência cotidiana. Era um mundo sem grife, nem luxo.
No terreno que formava o quintal, geralmente demarcado por uma cerca de tábuas de madeira afixadas ao solo e pregadas em balaústres, se plantava hortas com variedades de verduras e alguns tipos de legumes. Num cercado, criavam-se galinhas; noutro canto, plantavam- se bananeiras para garantir a fruta durante quase todo o ano. Presas a outro canto, para evitar que comessem a horta, era muito comum se criar duas ou três cabras, que garantiam o leite diário para as crianças. Porém, o item mais valioso daquele quintal de 20 x 40 metros eram as duas enormes jabuticabeiras. Já tinham 20 anos e estavam vistosas. Foram plantadas pelo antigo dono do imóvel, numa época que a área estava mais para zona rural do que para um bairro da cidade.
Os pés eram da variedade da “jabuticaba paulista”, cuja árvore é de maior porte e apresenta produção mais abundante, com frutos grandes, negros, brilhantes e de casca grossa, muito doce. O antigo proprietário contou que plantara as mudas duas décadas antes, quando havia construído a casa. A primeira safra viera a acontecer somente no décimo sexto ano após o cultivo. Foi uma beleza. Deu para encher vários latões de banha de porco. A fruta era uma excelente sobremesa, distribuída entre familiares e amigos. Desde então, a natureza era pontual. Todo ano, quando junho chegava, as jabuticabeiras floriam. Quanto mais flores, mais frutas vingariam.
Em meados de agosto, as jabuticabas já estavam na hora de serem colhidas. Havia ano que as árvores produziam uma segunda safra, entre novembro e dezembro. Essa variedade é nativa da Mata Atlântica. No passado, era parte da alimentação dos índios que habitavam esta região do País. Os colonizadores chegaram e descobriram a fruta. Passaram a usar técnicas europeias para a produção licor, suco, geleias e também um tipo de vinho rústico. O “Dicionário dos Alimentos” informa que a jabuticaba é conhecida há mais de 400 anos pelos colonizadores. Além do Brasil, a fruta é encontrada nas fronteiras do Paraguai, Uruguai e Argentina. O nome tem origem tupi. Jabuticaba quer dizer “frutas em botão” pela forma como nascem nos troncos das árvores. No interior de São Paulo, emprestou o nome a uma cidade (Jaboticabal), onde a planta se multiplicava há 190 anos. Apesar de apreciada, nunca teve uma produção comercial organizada.
No entreposto da Ceagesp, na capital, nesta época do ano, é possível se achar a fruta. Nas feiras-livres também. O Instituto de Economia Agrícola estima que a safra estadual da jabuticaba seja de 2,7 mil toneladas. A maior parte da produção se localiza na região da cidade de Casa Branca. Tudo pode mudar a partir de agora, por causa do resultado preliminar de uma pesquisa científica em andamento no Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp). A coordenadora da pesquisa, a professora Valéria Alves Quitete, concluiu que o extrato da casca da jabuticaba pode ser usado no combate ao diabete em estágio inicial e na redução da gordura no fígado.
Os testes iniciais foram feitos em camundongos diabéticos, que, ao consumirem o extrato da casca da fruta reverteram a doença e tiveram redução da gordura no fígado, que pode levar a um processo de cirrose hepática. Como efeito decorrente, os roedores perderam peso. Agora, os pesquisadores da Unicamp estudam o uso do extrato da casca de jabuticaba no combate ao câncer da próstata, com experimentos em camundongos transgênicos. Os resultados preliminares mostraram uma melhora substancial na morfologia da próstata dos roedores, além da diminuição da inflamação, revertendo a evolução do câncer. Como já disse, as pesquisas ainda estão na fase inicial. Num estágio avançado, os testes passarão a ser feitos em seres humanos. Se os resultados forem positivos, as conclusões poderão levar à produção de medicamentos obtidos a partir do processamento industrial de fármacos. Aí, entra-se numa esfera empresarial, que resultará na obtenção da patente de medicamentos. Segundo o Ministério da Saúde, entre 2006 e 2016, o número de brasileiros com diabete aumentou quase 62%, atingindo 10% da população de 209 milhões de pessoas.
O mundo todo vive uma epidemia de diabetes por causa de mudanças nos hábitos alimentares, a falta de praticar atividades físicas periodicamente e o envelhecimento populacional. Desde a década de 1990, já havia notícias de que o consumo regular de jabuticabas reduzia a glicose no sangue. No entanto, foram necessários mais de 20 anos para se aferir cientificamente essa tendência. A jabuticaba é uma espécie protegida pela legislação ambiental do País, por estar presente dentro de ecossistemas como a Mata Atlântica, o Cerrado e o Pantanal.
O artigo 225 da Constituição Federal de 1988, em seu parágrafo 4º, define a proteção por ser patrimônio nacional e que seu uso deve se dar visando à preservação do meio ambiente, inclusive quanto à utilização dos recursos naturais. Ou seja, cortar ou destruir um pé de jabuticaba é crime ambiental passível de prisão e elevada multa por parte dos órgãos ambientais federais, estaduais e municipais. A expectativa é de que a pesquisa científica acabe por tonar a fruta uma commodity de alto valor agregado como a soja e o café. Para mim, o curioso nessa história toda é que o poder medicamentoso da jabuticaba se encontra em sua casca. Quando criança, na época das safras da fruta, no começo da primavera, minha avó sempre nos alertava de que não era para engolir a casca, pois faria mal à saúde, “prendendo” o intestino. Não só falava, como fiscalizava a gente. Mal sabia ela que a casca era na verdade o melhor de tudo da jabuticaba.
Luiz Malavolta é jornalista em São Paulo. luizmalavolta@icloud.com