A dignidade humana prevalece como preceito fundamental e norteador da justiça. Para alcançá-la, a equidade é fundamental e está posta no art. 5º da Constituição Federal. Mais ainda, especificamente quanto ao trabalho, a Constituição Federal traz como sendo um dos direitos sociais. Esses pilares são frontalmente violados quando se verificam práticas discriminatórias contra profissionais transgênero.
De forma geral, a prática discriminatória que viola esses preceitos constitucionais no âmbito trabalhista consiste em qualquer distinção, exclusão ou preferência fundada em raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional, origem social ou outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por fim anular ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento no emprego ou profissão, nos termos do artigo 1° da Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho.
A observância dessa postura não discriminatória tem início no processo de seleção para contratação. É conferida ao empregador a liberdade de contratar o profissional que ele entenda se encaixar melhor nos requisitos da função. Seus critérios de escolha, no entanto, não podem se basear em práticas discriminatórias. Uma vez contratado o empregado, o empregador também não poderá ter ações ou permitir que qualquer ato de discriminação ocorra no curso da relação do trabalho.
Por exemplo, o direito de trabalhar não poderá ser impedido por motivo relacionado à vida pessoal presente ou passada do empregado, a não ser que tais fatos possam afetar diretamente o exercício. Em outras palavras, qualquer informação relacionada à vida privada do empregado somente poderá impactar negativamente seu trabalho se ela trouxer prejuízos para os interesses e negócios da empresa de forma objetiva, e não subjetiva. Por óbvio, esse impacto negativo jamais se verifica em razão de características relacionas a ser o empregado cisgênero ou transgênero.
É preciso citar também a obrigação da empresa de cumprir sua função social, prevista no artigo 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal. Já no artigo 7º, inciso XXX, da Constituição Federal, veda-se a diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.
Esses fundamentos são ratificados por tratados internacionais de direitos humanos assinados pelo Brasil e aplicam-se integralmente às relações de trabalho. Um deles é o Pacto de San José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil em 25 de setembro de 1992. Ele estabelece e assegura o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, à liberdade pessoal, à proteção da honra e da dignidade e ao nome.
Mesmo com todo esse arcabouço de sustentação do Estado Democrático brasileiro, porém, somente 16,7% das pessoas transgênero estão no mercado atualmente, segundo um estudo feito pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Além disso, 61% dos membros da comunidade LGBTQIA+ escondem sua identidade de gênero ou sexualidade, segundo dados do Center for Talent Inovation.
Os que estão no mercado de trabalho enfrentam, por sua vez, diversos obstáculos de empregabilidade que passam não apenas pelo preconceito, mas também por questões que não afetam os demais empregados cisgêneros, como a inobservância do nome social, proibição de vestimentas ou banheiro de acordo com a identidade de gênero, tratamento discriminatório e vexatório ou dispensa discriminatória quando a transição de gênero ocorre no curso do contrato de trabalho.
O ordenamento jurídico brasileiro já fornece as bases para que sejam coibidas práticas discriminatórias contra pessoas transgênero por parte tanto do empregador quanto dos colegas. Um dos primeiros casos paradigmáticos a esse respeito teve sua decisão proferida em novembro de 2014, quando o Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria, reconheceu a existência de repercussão geral da questão relativa à proibição de uso de banheiro de acordo com a identidade de gênero. No leading case, a autora, mulher transgênero, havia sido impedida por empregados de um shopping center de utilizar o banheiro feminino do estabelecimento, tendo sido abordada de maneira vexatória.
O STF consignou no acórdão que “constitui questão constitucional saber se uma pessoa pode ou não ser tratada socialmente como se pertencesse a sexo diverso do qual se identifica e se apresenta publicamente, pois a identidade sexual está diretamente ligada à dignidade da pessoa humana e a direitos da personalidade - repercussão geral configurada, por envolver discussão sobre o alcance de direitos fundamentais de minorias – uma das missões precípuas das Cortes Constitucionais contemporâneas –, bem como por não se tratar de caso isolado.”
Em maio de 2017, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou entendimento no sentido de que os transgênero têm direito à retificação do prenome e do sexo/gênero no registro civil, não estando condicionados à exigência de realização da cirurgia de transgenitalização (REsp 1.626.739-RS, rel. min. Luis Felipe Salomão, julgado em 9/5/2017).
Em agosto de 2018, o STF fixou a tese com repercussão geral de que “o transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa.” (Tema 761, RE 670422, rel. Dias Toffoli, julgado em 15/08/2018).
Na mesma linha de entendimento, as decisões da Justiça do Trabalho têm protegido a pessoa transgênero e, até mesmo, condenado empresas ao pagamento de indenização por danos morais em virtude de atos discriminatórios no curso da relação de trabalho. Algumas decisões chamam a atenção porque a defesa da empresa calca-se no fato de que a discriminação parte de outros empregados, e não da direção da empresa propriamente dita. No entanto, o Judiciário vem entendendo que é responsabilidade do empregador proporcionar um ambiente seguro e não discriminatório, podendo mesmo aplicar penalidades a empregados que violem esse dever de respeito à dignidade dos colegas transgênero.
Não há, portanto, lugar para defesa de prática discriminatória por “colegas” de trabalho, sobretudo porque, desde 2019, o STF considera crime a homofobia e a transfobia, e a empresa não pode ser cúmplice de empregados que demonstram posturas tipificadas como crime.
Por Caroline Marchi, sócia, e Sávio Andrade, advogado sênior; ambos do Machado Meyer Advogados