István Jancsó era um jovem húngaro em terras brasileiras com uma certeza: queria ser professor de história. Chegara de navio ao Rio de Janeiro em 1948, aos 9 anos de idade. Vinha com sua família, após decisão do pai de sair definitivamente da Hungria.
A Hungria havia se aliado ao Eixo durante a Segunda Guerra Mundial, mas tentara se juntar aos aliados depois de dezenas de milhares de soldados húngaros morrerem no front de batalha. A tentativa mal-sucedida de mudar de lado fez com que Hitler invadisse o país em 1944, a fim de garantir o apoio dos húngaros.
Como István declarou em 2009, numa entrevista para a Revista de História da Biblioteca Nacional: Meu pai não quis voltar para o país e optou pela emigração. A Hungria dele havia acabado. A antiga Hungria de seu pai era agora irreconhecível aos seus olhos. E o Brasil, seu novo país, o que era aos olhos de István?
Foi exatamente essa a pergunta que István procurou responder durante toda a vida. Para respondê-la, começou a pôr em prática seu desejo de ensinar História entrando no curso de História da USP em 1960, quando ainda era ministrado na rua Maria Antónia, na então chamada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL).
No dia 23 de março passado, aos 71 anos, István Jancsó, professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP - que desde o final de fevereiro estava internado -, morreu em decorrência de uma complicação renal.
Nordeste - Andrea Slemian, historiadora e doutora em História Social pela USP, conheceu István em 1990, quando começou a graduação em História. O professor foi seu orientador de mestrado e doutorado. Ela conta que o perío do da Maria Antónia foi essencial para a formação do jovem István: A Maria Antónia teve grande importância para ele, pelo cenário cultural efervescente que havia ali. Naquela época, István entrou em contato com os bares da região, os centros culturais, o Teatro de Arena, a Cinemateca.
Logo após concluir o curso, em 1964, foi convidado pelo professor Eduardo de Oliveira França a lecionar na cátedra de História Moderna e Contemporânea da faculdade. De 1964 a 1966, seu sonho de juventude erà uma realidade: nesses três anos, lecionou tanto na USP como na PUC-SP. Em 1966, aceitou prontamente um convite para lecionar na Universidade Federal da Bahia, pois pensava que, se quisesse entender de fato o Brasil, era preciso conhecer o Nordeste.
Em Salvador, onde tem dois filhos, se envolveu com o movimento sindical, contra a ditadura militar (1964-1985). Quando um de seus companheiros foi preso por distribuir um jornal do movimento, decidiu se exilar na França, em 1971.
Na França, dedicou-se ao doutorado e lecionou na Universidade de Nantes. Contudo, não se afastou das questões políticas e, conversando com amigos, decidiu, em 1972, junto à mulher, voltar para o Brasil, então sob o governo Medici. Aqui, consolidou o movimento Oposição
Sindical, junto aos operários paulistas. Acabou preso no Dops, em São Paulo, e depois no DOI-Codi, no Rio de Janeiro. István não gostava do rótulo de comunista. Via-se, sim, como um homem de esquerda.
Após passar alguns anos na iniciativa privada, voltou para a USP nos anos 80, indo lecionar no Departamento de História da FFLCH. Na Universidade, aprofundou-se nos estudos sobre a formação do Brasil e suas raízes.
O professor João Paulo Garrido, do mesmo Departamento de História, começou a trabalhar com o professor István em 1993. Ele destaca que István Jancsó deu uma contribuição fundamental para a historiografia brasileira. Um primeiro estudo na área que daria as bases para um projeto mais amplo foi o artigo Peças de um mosaico, de 2000, escrito por István e João Paulo Garrido.
Entre os livros que István publicou, destacam-se Brasil: formação do Estado e da nação, Independência: história e historiografia, Na Bahia contra o Império - História do ensaio de sedição de 1798 e Festa: cultura e sociabilidade na América Portuguesa.
Mas o legado do professor István vai além dos méritos acadêmicos e da contribuição para a historiografia brasileira. Para alunos e companheiros de faculdade, István foi, além de mestre, amigo e exemplo. Garrido conta que o professor via na ação na USP o seu princípio e seu fim. Era um professor que se destacava por sua grande devoção à Universidade. A sua característica mais marcante era ser um professor extremamente dedicado aos alunos e ao ofício. Atendia a todos os alunos de maneira devota. Estava disponível todos os dias na FFLCH e a todo o tempo, diz.
Era um daqueles caras que a gente sabe que vale a pena conhecer, diz Raphael Barelli, aluno do terceiro ano de História da FFLCH. Barelli, que estudou o Brasil colonial com István no primeiro ano da graduação, estava montando desde o ano passado um projeto de iniciação científica junto a outros dois alunos, do qual István seria o orientador. Ele tinha um dom incrível para lidar com os alunos, era extremamente atencioso. Cuidava da gente tanto nas questões acadêmicas quanto nas coisas do dia a dia. Um dia ele me disse: pare de estudar um pouco e vai ser divertir, jogar bola, conta.
Brasiliana Digital - Em 2002, István foi eleito diretor do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. Na mesma época, com o bibliófilo José Mindlin, idealizou o Projeto Brasiliana Digital USE com o objetivo de disponibilizar na internet as obras da Biblioteca Guita e José Mindlin, que será transferida para a Cidade Universitária, em São Paulo. O projeto já está em funcionamento, com várias obras disponíveis no endereço eletrônico www.brasiliana.com.br. Para István, não bastava trazer apenas a Biblioteca Guita e José Mindlin para a USP. Era preciso digitalizar o conteúdo e tornar o acervo acessível a toda a população.
De 2004 a 2009, ele coordenou o Projeto Temático Fundação do Estado e da Nação Brasileiros (1780-1850), apoiado pela Fapesp, que reunia pesquisadores de todo o Brasil. O projeto teve como intuito estudar os fatores que levaram a América portuguesa a se transformar em um novo Estado e em uma nação com identidade própria.
Um dos frutos do projeto foi a revista Almanack Braziliense, da qual István era editor. A revista, que torna públicos os estudos sobre o Brasil colonial e sua formação como nação independente, começou a publicar suas edições semestrais em 2005.
Andrea Slemian, em parceria com André Nicacio e Marco Morel, publicará ainda neste semestre o livro Historiador do Brasil: István Jancsó, contando a trajetória pessoal e profissional do professor. Baseado em entrevistas feitas com o professor entre 2007 e 2009, o livro será lançado pela editora Hucitec. Ele tinha uma trajetória impressionante, seria uma grande perda não registrar essa história, conta André Nicacio, que conheceu o professor em 2002, quando começou a graduação em História.
Para o professor João Paulo Garrido, a pergunta que seguiu István Jancsó por toda a vida - o que é o Brasil? - não era retórica. Ele tinha uma grande inquietação para entender o que era a nação brasileira, sua identidade. Ele contribuiu efetivamente para responder a essa questão, diz.
Foi um dos sujeitos mais brilhantes que conheci. Ele era um militante. Não muito no sentido partidário, mas no sentido de acreditar que o conhecimento e a visão crítica eram fundamentais para entender e transformar o mundo, acrescenta Garrido.