Pós-graduando da USP faz estudo estatístico de cinco línguas para verificar as semelhanças e as diferenças dos léxicos, concluindo que idioma e ideologia mantêm relação muito estreita
Difícil acreditar que os léxicos das línguas alemã e italiana tenham alguma coisa a ver com o que se passava nas cabeças autoritárias de Hitler e de Mussolini. Mas os lingüistas garantem que a relação existe. Os dois idiomas se caracterizam por forte tendência à vernaculização, isto é, à formação de palavras o mais possível distanciadas na forma das línguas-mães e da influência de outras línguas, acentuando-se o caráter nacionalista do léxico. As línguas têm o seu lado político e na história da formação das palavras é possível descobrir momentos em que a vernaculização se exacerba.
O italiano, por exemplo, é das línguas românicas a mais próxima do latim em termos fonéticos. Nos séculos 11 e 12, os italianos acreditavam estar ainda falando latim, apenas com algumas diferenças. Esse fato, somado à supremacia religiosa de Roma, fez da Itália o centro espiritual do Ocidente e contribuiu para despertar nos falantes o sentimento de que a península ainda era a capital histórica e cultural da România. A crença no mito de que os italianos, mais do que qualquer outro povo latino, eram os legítimos herdeiros da tradição e da cultura romanas foi retomada diversas vezes ao longo da história, mais recentemente durante o regime fascista, influenciando a evolução da língua a ponto de tornar a vernaculização um traço compulsório.
Assim chegamos a Mussolini. Vamos agora a Hitler. É que o idioma alemão apresenta comportamento semelhante ao italiano. Se a Itália se considera o centro da civilização latina, a Alemanha autonomeia-se a capital do mundo germânico. Foi do território alemão que as diversas tribos germânicas partiram para a conquista de Roma. Não por acaso, a região da Europa onde hoje se situa a Alemanha era chamada pelos romanos de Germânia, a pátria dos germanos. Resultado: em muitas línguas, Germânia e germanos são sinônimos de Alemanha e alemão. A fraca romanização da Germânia e ao mesmo tempo sua proximidade do Império Romano concorreram para que logo surgisse entre as tribos teutônicas do além-Reno um sentimento de oposição ao mundo romano. Por esse bom motivo o alemão foi a primeira das línguas germânicas modernas a produzir documentos escritos, ainda no século 7, portanto, cem anos antes do primeiro registro do francês.
Temos, pois, dois nacionalismos bem marcantes - o italiano e o alemão - que, afinal, evoluíram paralelamente. No caso alemão, tratava-se de disputa entre o imperador germânico e o papa em torno dos poderes espiritual e temporal. Disputa que assumiu caráter eminentemente político: Roma liderava a religião no Império, enquanto a Alemanha detinha o domínio territorial da Itália.
Nesse contexto, o caráter vernaculizante do alemão contribuiu para a consolidação da própria ideologia alemã. A crença nas origens e o apego à mitologia e às tradições dos antigos germanos, que teve seu auge no século 19 com o Romantismo, através das obras de gênios como Goethe, Wagner e Nietzsche, desaguaria, já no século 20, no nacionalismo e na xenofobia exacerbados do nazismo. Os períodos de nacionalismo tresloucado caracterizam-se sempre pelo combate à influência estrangeira no idioma. São fatos exemplares a guerra contra Napoleão, a guerra franco-prussiana de 1870, a Primeira Grande Guerra e o regime nazista.
O ERUDITO E O VULGAR
Está na hora de dizer quem nos dá essas informações sobre o caráter político-ideológico das línguas. Tudo isso, e muito mais (como costumam dizer as chamadas no rádio e na TV para as principais reportagens do dia), está no livro Léxico e ideologia na Europa Ocidental, do professor Aldo Bizzocchi, publicado pela Annablume com apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). O trabalho foi primeiro apresentado em forma de tese no curso de pós-graduação em Lingüística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Bizzocchi propôs-se criar um modelo de análise do léxico de línguas européias ocidentais do ponto de vista da tensão entre palavras eruditas e palavras vulgares. Fez uma análise estatística do comportamento de três línguas românicas (português, italiano e francês) e de duas germânicas (alemão e inglês), com base em dois discursos diferentes: o científico e o jornalístico, ou o erudito e o vulgar.
Mesmo que não tivesse outro mérito, o livro já vale o preço pelas excelentes "Noções preliminares", em que o autor analisa a civilização ocidental a partir das línguas e das culturas greco-latinas. A coisa se complica quando o doutor em Semiótica introduz o leitor no seu estudo estatístico das línguas. O trabalho consistiu em selecionar textos escritos das cinco línguas, coletar todas as ocorrências dos vocábulos (substantivos, adjetivos, verbos e advérbios derivados de adjetivos) e, finalmente, realizar um confronto de resultados. No caso do discurso jornalístico, o autor utilizou edições recentes de jornais e revistas de grande circulação em seus respectivos países. Em relação ao discurso científico, recorreu a livros e artigos produzidos por pesquisadores e pensadores eminentes que, por seus escritos, influenciam a expressão lingüística de toda a comunidade científica.
Mas esqueçamos os números, as variáveis, as chaves, as equações, as médias, as raízes quadradas, os xis e os ypsilones - que são coisas para aluno do IME entender - e vamos nos fixar em alguns resultados, já que a intenção do autor foi detectar as principais tendências de cada uma das línguas estudadas no que se refere à criação e à renovação lexicais, e confrontar os resultados para descobrir em que aspectos essas línguas se aproximam umas das outras ou se distanciam.
Bizzocchi chega à conclusão de que existem claramente duas diferentes tendências históricas: de um lado, a classicizante - muito receptiva às formas gregas e latinas, do ponto de vista fonético-fonológico, morfológico e ortográfico; de outro, uma tendência mais vulgarizante, em que predominam os elementos vernáculos ou semi-eruditos. Do ponto de vista dessa dualidade de comportamento, observa-se grande semelhança entre as línguas portuguesa, francesa e inglesa, de um lado, e entre o italiano e o alemão, de outro.
A tendência latinizante do francês, segundo o autor, delineia-se já na Baixa Idade Média (séculos 11 a 14), quando grande número de latinismos invade a língua. Mas o processo de grecolatinização é muito mais extenso e complexo, sendo resultado de trabalho árduo e contínuo de escritores e gramáticos. Sendo o francês a língua românica formalmente mais diferenciada do latim, é natural que apresente poucas vulgarizações. Quanto ao inglês, seu caráter clássico se explica pelo francês. Durante toda a Baixa Idade Média esteve a Inglaterra politicamente sujeita a dinastias francesas (normandos e plantagenetas). Nesse tempo o francês era a língua oficial do país. Mas mesmo depois da desvinculação política da Inglaterra em relação à França, a língua francesa continuou e continua a ser o principal modelo em que se inspira o inglês.
Do alemão já falamos, restando observar que, nas palavras de Bizzocchi, "não é por uma questão de consciência política, mas principalmente por aversão ao espírito da escolástica, que a maior parte dos autores religiosos adotam a língua alemã. Essa reação à escolástica e à sua expressão lingüística, o latim, viria a acirrar-se por ocasião da Reforma. A história da língua alemã é uma contínua tensão entre latinidade e germanidade".
Notícia
Jornal da USP