Artigo de Mayara Mundim, pesquisadora do Departamento de Bioquímica da Escola Paulista de Medicina/Unifesp, e Marimelia Porcionatto, professora da Unifesp e secretária regional da SBPC-SP
Distanciamento social, isolamento voluntário, quarentena, trabalho remoto. Essas ações, que eram estranhas à maioria de nós, em um instante passaram a ser parte do cotidiano e os reflexos dessa mudança estão por toda parte. Inflexão de curva é pauta de jornais, a epidemiologia é um dos focos centrais de discussões pelas redes sociais e ciência ganhou um status de “carimbo da verdade”, em contraposição a “achismos”. O que pouco se discute, no entanto, é o impacto que as medidas de isolamento, fundamentais no controle da pandemia de COVID-19, tem nas atividades de pesquisa nas ciências da vida.
Interessadas em saber como as medidas de isolamento estão afetando o desenvolvimento de projetos de pesquisa que requerem trabalho presencial, por exemplo, em laboratório ou em campo, realizamos uma enquete piloto com cerca de 200 pesquisadores em vários níveis da carreira: pesquisadores principais (36%), pesquisadores em estágio de pós-doutorado (16%), estudantes de doutorado (28%), mestrado (12%) e iniciação científica (6%). A maioria dos que responderam à enquete estão em universidades ou instituições públicas, no nível estadual (37%) e federal (56%), e têm financiamento para projetos e bolsas de diferentes agências de fomento – CAPES, CNPq e fundações estaduais, como FAPESP, FAPERGS, FAPERO, entre outras (72%).
Perguntamos, inicialmente, se as medidas de contenção do espalhamento da COVID-19 prejudicaram o andamento de seus projetos e a maioria (90%) informou que sim, sendo a principal atividade afetada, o trabalho em laboratório (Gráfico 1). De nossa própria experiência, bem como dos relatos de nossos colegas, sabíamos que a maioria das instituições de ensino e pesquisa estava com laboratórios fechados ou abertos somente para experimentos essenciais desde a segunda quinzena de março de 2020. E foi o que observamos quando perguntamos qual a situação do laboratório onde os respondentes desenvolvem seus projetos. As respostas foram divididas entre “laboratório fechado com todas as atividades suspensas” (48%) e “laboratório funcionando para atividades essenciais que não podem ser suspensas” (45%). Cerca de 10% responderam que seus laboratórios estão abertos somente para atividades relacionadas à COVID-19. Quanto à frequência de idas ao laboratório para realizar experimentos, a maioria informou que não está indo (Gráfico 2).
Por não ter acesso aos laboratórios, 87% dos pesquisadores responderam que estão realizando atividades em trabalho remoto, sendo as principais: análise de dados (76%), preparação de manuscritos para publicação (79%), escrita de revisões (46%), preparação de propostas e projetos de pesquisa para submissão (48%), planejamento de experimentos para o retorno às atividades (50%) e trabalhos administrativos (43%).
Mais de 75% dos que responderam o questionário estavam realizando atividades práticas quando os laboratórios foram fechados. Embora se avalie que quase a metade (48%) dos experimentos pausados possam ser continuados, metade dos pesquisadores respondeu que, pelo menos parte dos experimentos não poderá ser retomada quando os laboratórios forem reabertos. Com relação à estimativa de “tempo perdido” pela paralização dos experimentos, a maioria acredita que tenha sofrido uma perda de 2-4 meses (Gráfico 3) e 41% avaliam que, ao término da quarentena, poderão retomar as atividades em 1-2 meses (Gráfico 4).
Alguns poucos pesquisadores (4%) consideraram poder estimar o valor aproximado gasto com os experimentos que tiveram que ser interrompidos, que incluem custos com manutenção de animais de experimentação, reagentes para cultura de células, entre outros. Raramente contabilizamos o investimento necessário para a realização de cada experimento ou projeto específico, e isto ficou evidente neste questionário. Outros transtornos decorrentes da quarentena incluem atraso de entrega de material de pesquisa (16%) e cancelamento de viagens destinadas a reuniões científicas e/ou visitas a colaboradores (53%).
De modo a manter as atividades dos grupos de pesquisa respeitando o distanciamento social, a maioria dos pesquisadores (70%) está participando de reuniões online com seu grupo. Além do trabalho remoto diretamente relacionado ao projeto, 51% dos pesquisadores responderam que estão realizando atividades que podem trazer benefícios à sua vida como pesquisador. Essas atividades incluem realização de cursos de análise de dados, estatística, idiomas, programação, capacitação em metodologias ativas e à distância e meditação, entre outros.
Nem todos os pesquisadores relataram estar trabalhando de suas casas (13%), com justificativas que incluem mudança de rotina doméstica (14%), e quadros depressivos e de ansiedade (12%). Quando perguntados sobre o quanto a pandemia impactou sua saúde mental, em uma escala de 0 a 10, a média obtida foi 6, sendo que 33% selecionaram pontos de 8-10 na escala indicada.
Apesar dos pontos negativos da pandemia e da quarentena, 47% dos pesquisadores avaliam que esse período trará benefícios em algum aspecto de suas vidas como pesquisadores, como autodisciplina, valorização do contato social e trabalho em grupo, adaptação a novas situações, e aproveitamento do tempo para escrever revisões e organizar dados que estavam pendentes de análise, além de reflexão sobre novos caminhos a seguir.
Quando perguntados se consideram que a pandemia de COVID-19 trará mais reconhecimento para a pesquisa científica e para os cientistas, 77% dos pesquisadores responderam “sim”. A maioria acredita que a atual visibilidade dos cientistas na mídia, considerados por muitos como a principal esperança para sairmos da pandemia, fará com que a população e os governantes deem mais crédito à pesquisa científica, com a esperança de que esse reconhecimento venha seguido de maior investimento na área, inclusive para a produção de insumos nacionais para a pesquisa. Importante ressaltar os comentários sobre a importância do reconhecimento para aproximação da ciência à sociedade. A divulgação científica para o público leigo deve ser constante, de forma a mostrar que ciência não é gasto, e sim investimento.
Esperamos que, a partir da experiência vivida neste momento de pandemia, sejam formuladas políticas públicas de manutenção da infraestrutura de pesquisa e formação de recursos humanos, com financiamentos constantes em todas as áreas. Outros eventos que afetam a sociedade e que precisem de uma ação rápida e conjunta dos cientistas, podem ocorrer no futuro. Sem infraestrutura de pesquisa não é possível dar respostas rápidas em situações emergenciais, como a que estamos vivendo agora. A necessidade de unir esforços para resolver um problema comum, de forma global e colaborativa, ficou evidente. A pandemia de COVID-19 obrigou o trabalho em rede, de forma remota e integrada, e provavelmente será um divisor de águas na maneira como se faz ciência.
Este foi um estudo piloto e está sendo ampliado para um número maior de pesquisadores, com representatividade em todos os estados brasileiros. Se quiser contribuir, respondendo o questionário voluntariamente, por favor acesse: https://pt.surveymonkey.com/r/C2GY2G2.
Veja aqui os gráficos.
Sobre as autoras:
Mayara Mundim é pós-doutoranda no Laboratório de Neurobiologia, Departamento de Bioquímica, Escola Paulista de Medicina – UNIFESP
Marimelia Porcionatto é professora associada livre docente do Departamento de Bioquímica, Escola Paulista de Medicina – UNIFESP, e secretária regional da SBPC-SP subárea I