A importância econômica do etanol
Olá, leitora e leitores. O jornalista Celso Ming explicou de maneira muito didática em dois textos (“O futuro do etanol se o carro tiver de ser elétrico”, de 24 de junho de 2021; e “O futuro do etanol com o carro elétrico”, de 26 de junho de 2021) porque o Brasil – e o Estado de São Paulo – deve se preocupar com o futuro do etanol.
Resumindo, devido a pressões crescentes dos países ricos, as grandes montadoras vêm anunciando que entre 2030 e 2035 devem fabricar apenas carros elétricos, de modo que alguns cenários se descortinam para daqui a 10-15 anos:
• Carros com motores a combustão terão o mesmo futuro dos lampiões de gás depois do advento da eletricidade, e o mundo será inundado com o açúcar brasileiro, já que a maioria das usinas abandonará suas destilarias para produzir somente açúcar;
• Os motores a combustão sobrevivem em parte do mundo utilizando justamente o etanol renovável dado que não seria possível produzir eletricidade limpa para abastecer toda a frota mundial, e se os carros tiverem de rodar com eletricidade produzida a partir de combustíveis fósseis, a poluição e o aumento do efeito estufa pela emissão de gás carbônico para a atmosfera continuariam;
• O etanol continuaria a ser utilizado nos novos carros elétricos que utilizariam não mais pesadas baterias de lítio, mas células de combustível (fuel cells).
Vamos analisar o conjunto desses cenários e suas implicações, e fazer um exercício de futurologia aqui neste espaço.
Quem defende a hipótese de que os carros com motores a combustão sobrevivem é o Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE) e um dos maiores especialistas em energia e petróleo do Brasil.
Óbvio que ele entende muito mais do assunto do que eu, mas mesmo assim eu ouso discordar. As minhas razões são duas
1. O mercado dos países emergentes e pobres é cada vez menos rentável para as montadoras. Recentemente, a Ford decidiu não mais produzir automóveis no Brasil, e no fim de março deste ano estavam paradas por conta da crise econômica decorrente da pandemia Mercedes, Renault, Scania, Toyota, Volkswagen, Volkswagen Caminhões e Ônibus, BMW, Agrale, Honda, Jaguar e Nissan. GM e Volvo não pararam totalmente, mas reduziram substancialmente a produção. É difícil imaginar que as montadoras passassem a fabricar carros com motores a combustão apenas no Brasil ou para outros mercados ainda menos rentáveis.
2. Mesmo que a eletricidade necessária para abastecer veículos automotivos venha a ser produzida a partir de combustíveis fósseis, a utilização desses combustíveis fósseis de modo centralizado em grandes usinas geradoras de eletricidade permitiria o uso de tecnologias para captura e estocagem do gás carbônico (CCS, do inglês Carbon Capture and Storage).
Contudo, os obstáculos para a disseminação dos carros elétricos são importantes e devem ser levados em conta.
As baterias de lítio dão autonomia aos veículos muito menor do que a que se tem com motores a combustão, o recarregamento das baterias é muito mais demorado do que o reabastecimento dos tanques de combustível atuais, a produção do lítio tem graves problemas ambientais e o descarte e reciclagem das baterias ainda são problemas sem uma solução completa.
Neste contexto, a produção da eletricidade dos veículos por meio de células de combustível abastecidas com etanol dispensaria grandes mudanças na malha viária de recarga e levaria a um cenário oposto daquele apresentado no começo deste texto – valorização do etanol e do açúcar (pela escassez, dado que as usinas dariam preferência para a produção do etanol).
Células de combustível
Uma célula de combustível é uma célula eletroquímica que converte a energia química de um combustível (geralmente hidrogênio) e um agente oxidante (geralmente oxigênio) em eletricidade por meio de um par de reações redox.
As células de combustível são diferentes das baterias por exigirem uma fonte contínua de combustível e oxigênio (geralmente do ar) para sustentar a reação química, enquanto em uma bateria a energia química geralmente vem de metais e seus íons ou óxidos que normalmente já estão presentes na bateria.
As células de combustível podem produzir eletricidade continuamente enquanto o combustível e o oxigênio forem fornecidos. As reações que ocorrem na célula de combustível são:
Em geral, as células de combustível são conhecidas por terem conversão de combustível e eficiências elétricas significativamente maiores do que as tecnologias convencionais de combustão ou geração de energia e produzem muito menos emissões tóxicas, como NOx, ozônio e partículas.
Células de combustível tem eficiência global entre 40 e 60%, enquanto que a eficiência típica de um motor a combustão fica em torno de 25%. Isso combinado com sua modularidade, baixos níveis de ruído, altas taxas de utilização de combustível, capacidade combinada de geração de calor e energia em locais de uso final e menores emissões de gases de efeito estufa tornam as células de combustível uma opção atrativa para transporte futuro, aplicações de energia estacionárias e portáteis com longo benefícios econômicos e ambientais de longo prazo.
As células a combustível são classificadas principalmente pelo tipo de eletrólito que empregam. Essa classificação determina o tipo de reações eletroquímicas que ocorrem na célula, o tipo de catalisador necessário, a faixa de temperatura na qual a célula opera, o combustível necessário e outros fatores. Essas características, por sua vez, afetam as aplicações para as quais essas células são mais adequadas.
A maioria das células de combustível é alimentada por hidrogênio, que pode ser alimentado diretamente ao sistema de célula de combustível ou pode ser gerado dentro do sistema de célula de combustível reformando combustíveis ricos em hidrogênio, como metanol, etanol e combustíveis de hidrocarbonetos.
As células a combustível de álcool direto, no entanto, são alimentadas por álcool puro (metanol, etanol ou etileno glicol), que geralmente é misturado com água e alimentado diretamente ao ânodo da célula de combustível. Nas células de combustível de etanol direto, as reações envolvidas são:
Além de questões de alto custo e tempo de vida, os principais impedimentos para a comercialização de tecnologias de células de combustível, especialmente para o setor de transporte, são a disponibilidade de tecnologias maduras de armazenamento de hidrogênio e a quase inexistência de infraestrutura de transporte e distribuição de hidrogênio.
Já as células a combustível de álcool direto não têm os problemas de armazenamento de hidrogênio.
O etanol tem algumas vantagens em relação ao metanol: é muito menos tóxico, é quase todo produzido por rotas renováveis e tem uma temperatura de fulgor maior do que a do metanol, que implica mais segurança no manuseio.
Como já mencionado, acima, os maiores obstáculos ao uso das células de combustível são o custo, principalmente devido à platina utilizada nos catalisadores, e o tempo de vida.
O Departamento de Energia dos EUA (equivalente ao nosso Ministério de Minas e Energia) definiu metas finais para a vida útil do sistema de célula de combustível em condições de operação realistas de 8.000 horas para veículos leves, 30.000 horas para caminhões pesados e 80.000 horas para sistemas de energia distribuídos.
Nas aplicações mais exigentes, a confiabilidade e a robustez do sistema são necessárias em condições operacionais dinâmicas e adversas.
As condições operacionais realistas incluem partida e parada, congelamento e descongelamento, impurezas no combustível e no ar, umidade e ciclos de carga dinâmica que resultam em tensões na estabilidade química e mecânica dos materiais e componentes do sistema de célula de combustível.
Atualmente, a Toyota comercializa um carro movido a células de combustível, o Toyota Mirai, que utiliza hidrogênio direto. Ou seja, tem alto custo, manutenção complexa e a questão da disponibilidade limitada do hidrogênio. A Nissan lançou em 2017 um protótipo não comercial que utiliza célula de combustível a etanol direto.
Baterias de lítio são hoje mais baratas e robustas do que células de combustível. Faltam pesquisa e desenvolvimento para que as células de combustível se viabilizem e isso deveria ser uma questão estratégica para o Brasil e o Estado de São Paulo.
Pesquisa e desenvolvimento de células de combustível
A figura 1 mostra o número de artigos científicos publicados sobre células de combustível no mundo e sobre células de combustível e etanol.
Na base de dados do INPI (Instituto Nacional de Propriedade Intelectual) existem 475 patentes depositadas no Brasil com as palavras “célula de combustível” no título. Dessas, apenas 16 mencionam a utilização de etanol.
No diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) existem oito grupos de pesquisa consolidados (sete ativos) no Brasil que mencionam “célula de combustível” entre suas linhas de pesquisa.
Desses, apenas seis têm “células de combustível” entre suas linhas de pesquisa: um estuda células de combustível tipo PEM, três estudam células de combustível microbianas, e três estudam modelagem e simulação sobre células de combustível.
Somente dois grupos no Estado de São Paulo. Células de combustível microbianas não visam a movimentação de veículos. Células de combustível PEM (membrana de troca de prótons, em uma tradução livre) podem ser utilizadas em veículos automotivos, mas utilizam hidrogênio direto. Resumindo, aparentemente, não há nenhum estudo sistemático no Brasil sobre células de combustível de etanol direto. Há várias chamadas da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) que envolvem células de combustível, mas em geral envolvendo o uso de gás natural ou gaseificação do bagaço de cana.
Figura 1 Publicações científicas sobre células de combustível (a) e sobre células de combustível e etanol (b) no mundo ao longo dos anos, segundo o Web of Science.
A importância econômica do etanol
Segundo a União da Agroindústria Canavieira do Estado de São Paulo (Unica), o setor sucroenergético conta com cerca de 380 unidades produtoras e mais de mil municípios com atividades vinculadas à indústria sucronergética no País.
O setor é responsável por mais de 950 mil empregos formais diretos no setor produtivo e 70 mil produtores rurais de cana-de-açúcar independentes.
Em 2015, foram gerados US$ 8,5 bilhões em divisas externas, sendo o 4º segmento na pauta de exportação do agronegócio nacional naquele ano.
O PIB do setor é de aproximadamente US$ 40 bilhões (equivalente a 2% do PIB brasileiro). O valor bruto anual movimentado pela cadeia sucroenergética supera US$ 100 bilhões.
O Estado de São Paulo produz 47% do etanol brasileiro, e somente a produção paulista corresponde a 13% do total mundial.
O estado também é grande produtor de açúcar de cana: 14% do açúcar mundial é produzido em São Paulo.
Se há mais de mil municípios no Brasil cuja economia depende do setor sucroenergético, e a transição dos veículos automotivos de motores a combustão para motores elétricos é inexorável, o Brasil e o Estado de São Paulo já deveriam estar dedicando muito mais recursos ao desenvolvimento de células de combustível de etanol direto.
Em artigo de 2017, Renata Bossle na Revista Nova Cana (“Célula de combustível a etanol dificilmente será um sucesso”) vai na mesma direção, ao mostrar que a maior parte das patentes sobre células de combustível no mundo são de montadoras asiáticas.
O Japão parece ser o único país a avaliar sistematicamente o uso de células de combustível em seus automóveis.
Um grande consórcio envolvendo usinas de açúcar e álcool, empresas de energia, montadoras de automóveis que atuam no Brasil e agências de fomento à pesquisa deveria ser formado para pesquisar e desenvolver células de combustível, com ênfase em células de etanol direto. Temos cerca de 10 anos para isso.
ABEQ
A Associação Brasileira de Engenharia Química (ABEQ) é uma entidade sem fins lucrativos que congrega profissionais e empresas interessadas no desenvolvimento da Engenharia Química no Brasil. É filiada à Confederação Interamericana de Engenharia Química. Seu Conselho Superior, Diretoria e Diretoria das Seções Regionais são eleitos pelos associados a cada dois anos. Mais informações: https://www.abeq.org.br/
O AUTOR
André Bernardo é Engenheiro Químico formado na Escola Politécnica da USP, com mestrado em Desenvolvimento de Processos Biotecnológicos pela Faculdade de Engenharia Química da Unicamp e Doutorado em Engenharia Química pela UFSCar. Trabalhou no Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT) e em diferentes indústrias químicas. Atualmente é professor do departamento de Engenharia Química da UFSCar. contato: abernardo@ufscar.br