Notícia

Jornal do Brasil

O extermínio do outro

Publicado em 24 abril 1997

Por MUNIZ SODRÉ*
Peptídeo intestinal vasoativo é a expressão mais nova no crescente vocabulário da clonagem. Trata-se de um neurotransmissor que, nas mulheres, leva ao cérebro a sensação de orgasmo. Segundo os pesquisadores americanos que isolaram a substância química, está aberto o caminho para a criação da "pílula do orgasmo feminino". Em termos estritamente científicos, a descoberta não se vincula às pesquisas que levaram à replicação da ovelha Dolly. É um avanço médico, rumo a um analgésico natural e à sensibilização de mulheres lesadas na medula espinhal. No entanto, é preciso considerar a clonagem como algo mais do que o mero desdobramento de seres vivos e refletir sobre o seu alcance mental e cultural. Nessa segunda direção, caminham algumas das especulações contemporâneas, a exemplo das de Jean Baudrillard, europensador. Para ele, o clone é fenômeno típico da visão cibernética e informática do mundo: o da abolição das diferenças (mãe/pai, masculino/feminino, mesmo/outro) em favor de uma reprodução serial do Mesmo. Clonagem implica, assim, tecnologia genética e mental. Daí, o interesse cultural da mera sugestão de uma pílula do orgasmo feminino. É que pertencemos a uma geração moldada pelos efeitos da Revolução Sexual. Décadas atrás, Reich seduzia-nos com sua psicanálise nada ortodoxa, indicando a via do sexo sem reprodução, voltado tão só para as possibilidades do gozo orgástico. Seduzia e subvertia: seu evangelho devastava os outros instituídos. Agora, entretanto, cria-se a possibilidade da reprodução sem sexo. O clone é produto de um corpo ausente, réplica de uma matriz remota, isenta do encontro das diferenças. Sexo (do latim secare) quer dizer precisamente cindir, diferenciar. Sem a diferença, termina o que tem sido entendido como sexualidade. Mas, como vemos, continua o orgasmo e, para isto, já se anuncia a pílula. Teóricos, filósofos, europeus de um modo geral, têm todos razão em gastarem latim e papel no exame dessa questão que prenuncia o novo milênio. Afinal de contas, a baixa da taxa de natalidade é progressiva na Europa, os indivíduos atomizam-se cada vez mais sob o globalismo e suas tecnologias, os contatos tornam-se telemáticos, a velha sexualidade anacroniza-se. É possível que as massas do Terceiro Mundo (as elites sempre foram e serão "européias"), à margem dos influxos globais, ainda guardem por algum tempo reservas de pulsão sexual, estratégias insuspeitadas de agenciamento das diferenças. Não é certo, porém, que se protejam de certos efeitos perversos da clonagem generalizada que, insistimos, é mental e cultural. Na verdade, esses efeitos já se fazem visíveis em setores como a política e as relações humanas. Vamos à primeira: incapaz de continuar representando as diferenças sociais, sem força de contradição ou sem discurso de oposição, a política produz clones. Sob a ordem globalitária, uma mesma matriz ideológica replica as figuras do poder. Os presidentes-clones espalham-se pelas Américas, em breve estaremos consagrando nas urnas mais um sucessor de si mesmo. É vencer ou vencer, como disse o outro. Nas relações humanas, afigura-se a lógica do pior. Assim como as novas tecnologias rebaixam o valor do trabalho humano (embora dele dependam), a nova consciência de determinados estratos urbanos viceja na inconsciência da diversidade da espécie humana, na dessensibilização radical para com o outro. Dirigentes políticos, elites sociais, consumidores privilegiados, todos tendem a replicar a sua própria imagem e as suas escolhas, embalados por uma retórica cruel e arrogante. A matriz vem de fora, é globalitária: a cada avanço tecnológico, um avanço do mercado neobárbaro. Talvez por isso não devamos nos surpreender tanto quando um grupo de jovens da classe média brasiliense, sem antecedentes criminais, ateia fogo a um índio adormecido num banco de praça. Trata-se de replicantes de uma nova ordem, atingidos pela súbita visão da diferença (índio, pobre, negro — poderia ser qualquer "outro") no meio da noite. Modelados para o mesmo, o que desejar senão o extermínio do outro. Ironia objetiva é o fato de que o morto, tenha sido membro da mesma tribo que acolheu Cabral — episódio germinal da nação brasileira — e em proximidade espacial com o poder que considera anacrônico o espírito nacional. Espírito nacional, para quem já esqueceu, quer dizer amor ao território e seus patrimônios, quer dizer menos arrogância e mais solidariedade nacional-comunitária. Mas tranqüilizemos-nos ou nos assustemos muito (e aí aparece a solidariedade, a exemplo dos que socorreram o índio), a depender do grau de neoliberalismo da consciência: nos bastidores de Brasília, nos acordos de liderança do mesmo com o mesmo, pode estar sendo fabricada a pílula do gozo pela indiferença. Professor titular da UFRJ e escritor