Morto em 28 de fevereiro, o bibliófilo que montou a maior e mais valiosa coleção de livros particulares do Brasil - e doou para a USP a Biblioteca Brasiliana, com 40 mil volumes ligados à civilização brasileira - deixa o vazio da perda dos grandes homens da cultura
Inocular o vírus da paixão pelos livros no maior número possível de pessoas. Assim pensava José Ephim Mindlin, o maior bibliófilo brasileiro, que morreu no dia 28 de fevereiro, aos 95 anos de idade, de falência múltipla dos órgãos, e que viveu uma longa vida contemplando e colecionando livros de valor inestimável.
Estamos órfãos. Os livros estão órfãos, desabafa Plinio Martins Filho, diretor-presidente da Editora da USP (Edusp). José Mindlin era uma pessoa única, dedicada à cultura, apaixonado pelos livros, pela boa leitura, incentivador de campanhas pelo aumento de leitores. Seu falecimento deixa um grande vazio.
Martins lembra que José Mindlin foi fundamental para a Edusp a partir de 1989, quando a editora entrou numa nova fase e passou a editar seus próprios livros. Deixou de ser coeditora e se tornou uma editora. Quando assumi a direção da editora, eu o convidei para ser o presidente da comissão editorial e ele permaneceu nessa função durante 12 anos. Nunca faltou às reuniões porque adorava o assunto: livros. Até por volta de junho de 2009, frequentou as reuniões e não faltou à inauguração da nova livraria da Edusp, na Cidade Universitária, no ano passado.
Segundo Martins, José Mindlin foi um grande incentivador da ideia de a Universidade ter uma livraria à altura da sua importância. Era uma pessoa ímpar, com perfil de empresário, intelectual, defensor da cultura, a vida toda trabalhou para isso. Tinha um lema: sem leitura não há cultura.
Doação
José Mindlin foi um apaixonado pelos livros, gostava de tocá-los, como sempre afirmava, admirava os projetos gráficos, a diagramação, o papel. Sua paixão o levou a construir a maior coleção de livros raros e preciosos do País. Parte dela - a chamada Brasiliana, que se refere aos volumes ligados à história e à cultura brasileira - irá ocupar prédio próprio no campus da USP, sob a responsabilidade de uma fundação criada pelo próprio Mindlin, que, com a Universidade, administrará a biblioteca. A transferência da biblioteca para um espaço público permitirá que um número maior de pesquisadores faça uso do seu acervo, ampliando, desse modo, o grupo de interessados em ter acesso ao mundo mágico dos livros colecionados por Mindlin. A Brasiliana é composta por 17 mil títulos e 40 mil volumes. O prédio que abrigará o acervo está em obras e deverá ser inaugurado em 2011.
Cleber Teixeira, editor do livro Memórias esparsas de uma biblioteca com José Mindlin, narra os momentos inesquecíveis que passou na casa de José Mindlin, no bairro paulistano do Brooklin, onde está instalada sua biblioteca. Foi lá que tive a chance de folhear o livro Hypnerotomachia Poliphili (A luta amorosa de Poliphilo em um sonho), de Francesco Colonna, um dos incunábulos mais preciosos da biblioteca, editado por Aldus Manutius em 1499. Outras raridades que lhe deram uma sensação inesquecível foram a primeira edição de Os lusíadas, de Luís Vaz de Camões, e os originais de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, entre outros.
Ainda em depoimento no livro, Mindlin conta que nunca planejou formar uma biblioteca. Ela surgiu como uma plantinha, que no tempo se tornou uma árvore e esta, por sua vez, virou floresta. Foi se formando por força dos temas que iam me atraindo e que me levaram, em cada caso, a ler livros que lhes diziam respeito. Os assuntos eram muitos e variados, e isso resultou, já nos primeiros anos, em diversos conjuntos.
A família e os livros - Casado com Guita de 1938 até 2006, quando ela morreu, José Mindlin teve quatro filhos, e com eles correu o mundo atrás dos livros que desejava tocar. Comprou a primeira edição ilustrada do poeta italiano Francesco Petrarca, de 1488, as primeiras versões de Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, além de documentos, mapas e cartas.
Não foram somente os livros que fizeram a vida de José Mindlin. Nascido em 8 de setembro de 1914, ele foi advogado, jornalista, empresário, secretário de Cultura de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). Como empresário, foi um dos sócios-fundadores da Metal Leve, uma indústria de pistões. Ele mesmo, em suas memórias, conta que nunca soube o que era um pistão - componente automotivo que alçou a Metal Leve ao topo do ranking nacional das indústrias de alta tecnologia, exportando para mais de 50 países. Chegou a empregar 6 mil pessoas. Ele afirmava: Posso dizer, sem pretensão nem água benta, que ajudamos a desenvolver o País. E sem tirar um tostão dos cofres públicos, declarou à imprensa em 2003. Em 1996, a empresa foi vendida para a alemã Mahle.
Mesmo trabalhando muito à frente da empresa, nunca deixou os livros de lado. Sempre arranjava um tempo para uma boa leitura. Por mais chocante que possa parecer, não fui um empresário apaixonado pela vida empresarial, embora não deixasse de lhe dar a devida importância. Sei o que a empresa representa como fator de desenvolvimento, e sempre a encarei como um instrumento, não como uma finalidade em si mesma. Instrumento de progresso coletivo, não apenas individual, o que significa que a empresa, além de cumprir suas tarefas específicas (que não são poucas nem fáceis), tem obrigações sociais que não podem ser ignoradas, inclusive com a cultura.
Em nota, o reitor da USP, João Grandino Rodas, afirmou que José Mindlin constitui um exemplo multifacetário de brasileiro. Intelectual primoroso, preocupado não unicamente com o seu próprio aperfeiçoamento, mas também com a disseminação da cultura entre os seus concidadãos. Empresário de visão e de sucesso, obteve respeito nacional e internacional. Democrata intransigente, firme, mas sem radicalismos. Sua virtude principal, entretanto, foi cultivar a bonomia, a simplicidade e a abertura para com o próximo. Isso fez dele uma pessoa ímpar, que encantava os que dele se aproximavam, destacou o reitor. Para a comunidade uspiana, além da valiosíssima Biblioteca Brasiliana, deixou o mandato de juntar tradição e modernidade: restaurar e guardar os livros, digitalizando-os para permitir acesso a todos. O maior monumento à sua memória será, paulatinamente, digitalizar todo o acervo bibliográfico e documental da USP, passível de sê-lo, para maximizar a pesquisa, coibir o plágio e, mesmo, para o mero deleite intelectual, finaliza a nota.
Uma vida entre livros
A Biblioteca Brasiliana começou a ser formada por José Mindlin a partir de 1927, quando ele tinha 13 anos de idade. Muitos anos depois, ele e sua esposa Guita perceberam que a magnitude da coleção já não devia contemplar o espaço particular da casa em que viviam, e sim um lugar público, onde mais pessoas pudessem manusear os livros e sentir o prazer de ler cada obra ali exposta. Daí surgiu a ideia de formar a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, doando parte de seus livros para a Universidade de São Paulo. A Biblioteca é um órgão da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP.
Pedro Puntoni, coordenador-adjunto do Projeto Brasiliana USP, destaca que a doação da Biblioteca teve uma longa caminhada e foi finalmente finalizada em 2006. Houve um grande esforço para que a coleção ficasse na USP. Nós, da Universidade, temos que ver não apenas como um orgulho, mas sim como uma grande responsabilidade a tarefa de concluir as obras da Biblioteca, para que todos os brasileiros tenham acesso a essa preciosidade. A USP assumiu esse papel e deve cumprir o desejo da família.
Puntoni conta que, para ampliar o alcance do gesto generoso de Mindlin, foi criada a Brasiliana Digital (www.brasiliana.usp.br), financiada pela Fapesp, que disponibilizará todo o acervo em formato digital. Essa é uma oferta da Universidade para a sociedade. Já temos algumas obras digitalizadas, como as Atas do Conselho do Estado de 1842-1889 e Os sermões de Padre Antonio Vieira.
Segundo Puntoni, os próximos objetivos são terminar a construção do edifício que será a nova casa dos livros, ampliar a digitalização do acervo e implantar o Centro de Restauro do Livro e do Papel. A ideia é que esse centro não cuide apenas dos acervos danificados da USP, mas que também seja um centro de referência, que ofereça cursos de conservação e manutenção de livros e faça a formação de profissionais da área, explica.
Por ser bem próximo de José Mindlin, Puntoni relata a perda irreparável que o País sofreu. O doutor José Mindlin viveu uma vida longa e feliz. Era uma pessoa bem humorada, que tinha como lema não faça nada sem alegria. Sempre foi muito amoroso e carinhoso com a família e os amigos. Vamos sentir muito a sua falta. Mesmo quem não conviveu com ele.
No site da Biblioteca Brasiliana USP, José Mindlin dá o um recado que é um incentivo à propagação da leitura no Brasil: Quem pega o gosto pela leitura na infância tem esse gosto até o fim da vida.