Pensar para reformar exige cada vez mais uma inversão: reformar para melhor pensar. Eis uma das lições do pensamento complexo de Edgar Morin. No universo da mídia, a tentação das unificações cômodas, rápidas e aparentemente esclarecedoras tem provocado, por vezes, graves e impertinentes superposições. Complexificar implica também buscar uma nova maneira de refletir sobre antigas "verdades".
Tornou-se, nos últimos anos, comum falar em crise do pensamento francês. Depois da eclosão do "caso Sokal", em torno de supostas imposturas relativistas, os intelectuais franceses passaram a ser vítimas de uma suspeita permanente. Mas existe de fato um "pensamento francês"? Como amalgamar diferentes percepções, imaginários, percursos, ideologias sob uma mesma etiqueta? O que se esconde por trás da idéia, em princípio, banal de um "pensamento francês" esterilizado e corroído pela retórica, pelas metáforas fáceis e abusivas e pela falta de um maître à penser?
A hipótese mais interessante para tais questões encontra-se ao longo da densa obra de Edgar Morin: o racionalismo cristalizou o princípio da simplificação. Escolhe-se a falsa certeza à incerteza; opta-se pela unidade dogmática contra a aventura da polissemia; a idéia classificatória de escola, redutora e insuficiente, toma o lugar da diversidade.
A complexidade, na esteira do que tem escrito e dito Edgar Morin, significa a implosão das reduções do múltiplo ao uno, da eterna explicação do desconhecido pelo conhecido, da eliminação da poesia em nome de uma verdade científica autoritária e incapaz de relativizar-se. Complexificar passa pela recusa da substituição ingênua das verdades positivas pelas verdades negativas. Não se trata de trocar passivamente a "verdade é..." por "não há verdade alguma". O relativismo absoluto é absolutamente anti-relativista.
Morin não integra o establishment intelectual nem o poder político. A sua força e sedução vêm dessa marginalidade que, paradoxalmente, não o afasta do centro das principais discussões deste final de século. Equilibrista da palavra e do sonho, da esperança e da crítica, tece onde outros apenas rompem, constrói onde outros somente se desesperam. Contudo, Edgar Morin não é maître à penser, embora seja um catalisador, um instigador, um inspirador, uma fonte de conhecimentos de pistas de pesquisa, de teorias, de métodos. Ser um maître à penser equivaleria a negar a sua própria paixão pela autonomia. O maître à penser conduz um rebanho; o intelectual inspirador, como Morin, sugere caminhos de independência e de liberdade.
Reformar para pensar é uma incitação à superação dos esquemas tradicionais que se legitimam na relação mestre/discípulo, na qual o primeiro deve fornecer ao segundo, um projeto acabado de transformação individual e coletiva. As desilusões deste final de milênio têm acarretado mais desencanto e mais lucidez, mas ceticismo e maior consciência dos limites da ciência e dos projetos, do saber e razão. A aceitação da diversidade é uma conseqüência do fracasso das doutrinas que prometiam o paraíso na terra com base numa cientificidade "forte", mas devastadora.
Certas questões, portanto, precisam ser revisadas. Existe uma crise nacional de pensamento, a do francês? Ou ocorreu um deslocamento no imaginário intelectual que sepultou a idéia de maître à penser, tornado cada indivíduo ao mesmo tempo órfão e autônomo?
Juremir Machado da Silva é professor da Famecos/PUC-RS
Notícia
Jornal do Brasil