Talvez por ter sido publicado no mesmo ano de Macunaíma, passou em branco uma data redonda em relação a um livro- chave de Mário de Andrade: em 2018 deveríamos ter comemorado os 90 anos da publicação de Ensaio sobre música brasileira. Assim mesmo, sem o artigo definido "a" que consta desde a primeira edição. Trata-se, com certeza, de um dos livros que exerceram maior influência na música brasileira. Foi o momento em que, após o clarão modernista de 1922 calcado em boa parte nas vanguardas europeias, Mário voltava-se para o país, gestando o ideário nacionalista - de novo antenadíssimo com o que rolava na Europa naquela década. A professora titular do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP Flávia Camargo Toni, que realizou um trabalho fundamental de organização e notas do que chama de "edição fidedigna", a ser publicada pela Edusp com apoio da Fapesp, indica nesta entrevista outros erros graves do livro tal como o conhecemos na única edição atualmente disponível, a da Martins. E, mais importante, mostra por que Mário permanece atualíssimo nestes tempos pós-modernos pluralistas em que vivemos.
Como foi descoberto o exemplar de trabalho em que Mário fez anotações e correções?
Quando Mário editava um livro, costumava se desfazer de todo o material de pesquisa que alimentara a obra e constituía um "cavalo de santo", ou seja, um exemplar em que anotava acréscimos e correções que pretendia fazer no caso de reedição. Era o "exemplar de trabalho"- e possuímos, no IEB/ USP, alguns destes volumes. No caso de Ensaio sobre música brasileira, o exemplar esteve em mãos de colecionador particular que há certo tempo doou o livro para a família do musicólogo. Eles o emprestaram para o IEB, e a partir dele estou preparando a edição do texto.
A primeira edição, de 1928, saiu com erros e inversões de exemplos musicais.
Os maiores problemas ocorreram em trechos bastante discutidos. Por exemplo, na parte dedicada ao estudo do ritmo, Mário indica três grafias para a melodia Capim da lagoa. Quando, em 1964, a Martins publicou o livro, houve uma inversão na ordem dos três exemplos; quer dizer, a grafia que ele considerava "mais ou menos legítima" foi invertida, ficou em segundo lugar. Mas a que ele acreditava mais aconselhável está na ordem certa, ou seja, é a terceira. Esse erro permaneceu nas reimpressões. A partir de 2006, outra editora preparou novas edições e somaram-se enganos: em trecho da primeira parte de Ensaio, quando o musicólogo discute a instrumentação, afirma acreditar ser aquele (1928) um período de "predominância rítmica" na música contemporânea, exemplificando: "Não é por causa do jazz que a fase atual é de predominância rítmica. É porque a fase atual é de predominância rítmica que o jazz é apreciado tanto. E com efeito, para citar um caso só, A sagração da primavera de Stravinsky é anterior à expansão do jazz na Europa e é já uma peça predominantemente rítmica, com uma bateria desenvolvida que ... profetizava o jazz". Eis a maior alteração de todas, pois na edição de 2006 se lê: "Não é por causa do jazz que a fase atual é de predominância rítmica, com uma bateria desenvolvida que ... profetizava o jazz".
Ensaio saiu no mesmo ano de Macunaíma, e as duas obras comungam o espírito de descoberta do Brasil real - o de uma linguagem nacional, no caso do romance, o de uma música real do país, sobretudo do Norte e do Nordeste, no caso de Ensaio. Pode-se dizer que em Ensaio Mário fixou o momento em que realmente teve a compreensão maior da realidade musical brasileira e a partir disso ampliou seu escopo estético, até 1938, quando bancou a missão folclórica ao nordeste?
A pergunta guarda, de fato, aquelas que considero as melhores "chaves" para entender esse universo. Há muitas fontes comuns de pesquisa entre os dois livros. Ambos são gestados desde meados de 1926, quando Mário estudou, disciplinadamente, autores que narravam os costumes do Brasil do passado e aqueles que recolheram fatos da cultura popular. Em geral não nos damos conta de que ele leu inúmeros autores que não tratam objetivamente da música do Brasil, como Teófilo Braga (Cancioneiro popular portuguez e História da poesia popular portuguesa), Fernão Cardim (Tratados da terra e gente doBra· si~, Pereira da Costa (Folklore pernambucano), Theodor Koch· -Grunberg ( Vom Roraima zum Orinoco) - no qual localiza a fábula sobre o deus Makunaima, dos índios Arekuná- e dezenas de outros viajantes e folcloristas. Aliás, creio que a escassez de exemplos musicais registrados em livros tenha sido um dos motivadores para ele realizar a segunda viagem do "turista aprendiz", poucos dias após Ensaio ter sido publicado. No entanto, se neste primeiro momento ele busca fontes musicais qlie alimentem os estudos e a criação de nossos compositores, dez anos depois, em 1938, almeja ampliar o registro sobre nossos cantos e danças não só pela pesquisa estética, como pela ideia da salvaguarda.
Mário alinhava-se com (e conheceu os trabalhos de) Bartók, Kodaly, franceses e ingleses e norte-americanos no sentido de buscar as raízes das culturas de seus países e desse modo se fiarem em tradições locais?
Creio que um dos melhores índices de que esse musicólogo era um homem do tempo dele, um modernista no rigor da palavra, é justamente o fato de acompanhar o que os contempo· râneos produziam e discutiam. Isso se dava por meio da leitura sistemática de livros e revistas. Com a modernização do equipamento gráfico no pós-guerra, imprimia-se cada vez mais rápido e melhor, muitas das grandes editoras de artes e literatura em geral tinham suas próprias revistas, e ele podia acompanhar o que era de interesse e encomendar. Alguns autores circulavam no Brasil, como Tomas Pires, César das Neves, Melo Morais Filho, mas outros ele tinha de importar, como Natalie Curtis Burlin ou Albert Friedenthal, J ulien Tiersot, Granville Bantock .