Analisar as relações entre a literatura e a sociedade brasileira foi o principal objetivo do livro Os Parceiros do Rio Bonito – Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida, do professor Antonio Candido, publicado em 1958 e originado de sua tese de doutorado. O livro foi discutido durante o 3º Colóquio Mindlin, realizado no dia 19 de novembro, na sala do Conselho da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. O evento teve a coordenação dos professores Celso Lafer, presidente da Fapesp, e José de Souza Martins, docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
O professor Martins lembrou que, ao ler o livro de Candido pela primeira vez, se questionou: como alguém do porte de Antonio Candido perde tempo em estudar o caipira brasileiro? Esse pensamento, segundo o professor, surgiu porque ele mesmo teve uma vida caipira, ao lado de seus pais, e, na época, as pessoas tentavam se livrar da sua história pessoal para defender a cultura dita culta. O livro mudou essa perspectiva.
Martins observou que Os Parceiros do Rio Bonito é um marco na literatura brasileira porque encerra um período da história do pensamento brasileiro de preocupação com o caipira e o sertanejo. “Trata o conhecimento sobre o caipira como uma cultura merecedora de respeito”, analisa.
Estigma – Martins ressaltou que Antonio Candido chama a atenção para o fato de que foi no século 18 que se definiram os parâmetros da cultura e da figura do caipira. Como exemplo, lembrou que em 1887, pela primeira vez, se apresentou no palco de um teatro provisório o violeiro Pedro Vaz, que tocou viola caipira num espaço de cultura apenas frequentada pelas pessoas cultas da cidade de São Paulo. Até então a imprensa trazia anúncios sobre escravos fugidos e a viola era vista como um traço de caráter desse escravo, de gente à toa, que só gosta de folia e não de trabalho. “Geralmente o violeiro era escravo mulato. Por isso, ser um violeiro era um estigma. Portanto, ser caipira era um sinal de bastardia muito usado no final do século 18”, explicou Martins.
Foi a partir daquele evento que se abriu um espaço de preocupação com o caipira com jeito e identidade dos paulistas, possivelmente dos brasileiros. Já o período em que começa o interesse erudito pela figura do caipira é também o do pintor Almeida Junior (1850-1899), que esboçou através de pincéis e tintas o típico caipira brasileiro.
Martins lembrou que pesquisadores protestantes também demonstraram grande interesse pela cultura caipira. É o caso de Cornélio Pires, que fez uma extensa etnografia da cultura caipira e foi o inventor da música sertaneja dos anos 20. Outro protestante, Alceu Mainard de Araújo, pesquisou, fotografou, filmou, registrou, anotou e deixou muito material como referência. Antoniel Mota, pastor presbiteriano, levantou farto material sobre o dialeto do caboclo e, quando se tornou professor da FFLCH, introduziu a área da linguística. Amadeu Amado publicou, em 1920, o Dialeto Caipira, reeditado posteriormente por Paulo Duarte com uma erudita introdução sobre a questão do dialeto caipira e a língua nhangatu ou língua geral da Amazônia, chamando atenção para a formação cultural do povo e, sobretudo, para a formação do senso comum brasileiro.
Enquanto alguns estudiosos enobreciam a figura do caipira desconstruindo a imagem estigmatizada, Monteiro Lobato, com o personagem Jeca Tatu, era voz discordante conforme mostra Antonio Candido no livro, lembrou Martins.
Necessidades – Segundo Martins, o que distingue o livro de Antonio Candido é o seu método de pesquisa. Ele trabalha com a premissa da totalidade, da dialética de Karl Marx e usa também como referência a primeira parte do livro Ideologia Alemã, de Engels, obra fundamental para entender a teoria das necessidades. “Antonio Candido bebe nessa fonte e discute o atendimento das necessidades dos caipiras, uma questão que se repõe continuamente. É o que move o grupo a se situar dinamicamente na realidade social. Portanto, essa é uma linha de pensamento diferente da dos outros autores, que achavam que as populações camponesas eram mobilistas, insensíveis, vulneráveis à mudança social e a necessidade de mudança os tornava resistentes”, analisa.
Os dois grupos de populações analisados por Antonio Candido em Os Parceiros do Rio Bonito eram grupos dinâmicos enraizados nas tradições caipiras e, portanto, não imunes e indiferentes à possibilidade da inovação e transformação social. Candido aponta o empobrecimento, a redução da vida econômica e da sociabilidade aos mínimos vitais. Ao usar o exemplo do rapto de uma noiva como solução para o não pagamento da festa de casamento – e assim não passar vergonha com os familiares e vizinhos –, o autor mostra o quanto o caipira é criativo e inventivo.
O caipira de Antonio Candido é um caipira original, que não foi contaminado pela economia de mercado, analisou Martins. Esse caipira se organiza e se manifesta depois da crise da escravidão, do colonato, da decadência do café, e isso faz com que o dono de fazenda o queira novamente trabalhando em suas terras. Então esse caipira se restabelece, se reinventa e se adapta à crise. “Para Candido, o caipira não é uma manifestação de imobilismo, e sim de altíssima competência inventiva e criativa, cuja matriz está na própria cultura caipira”, refletiu Martins.
Ainda durante o colóquio, José de Souza Martins apontou a diferença entre o livro Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, e Os Parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candido. Para o professor, enquanto Freyre trabalha com as figuras dominantes do canavial açucareiro nordestino, tentando explicar o Brasil através dessas figuras, Candido procura nas figuras irrelevantes a realidade social brasileira. “A estratégia que os sujeitos pequenos são capazes de fazer para sobreviver é onde se apresentam as estruturas sociais mais profundas e explicativas das coisas, que não são visíveis no plano convencional. Freyre escolheu a figura que mais acoberta, que é o senhor da casa-grande, enquanto Candido escolheu o caipira, que mais revela”, analisou Martins.
Os Colóquios Mindlin
Os colóquios realizados pela Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) têm o objetivo de discutir a obra de importantes figuras da intelectualidade brasileira ou estrangeira que se destacaram na história da cultura do Brasil.
O 1º Colóquio Mindlin aconteceu em 22 de abril passado e apresentou a pesquisa de Sérgio Buarque de Holanda sobre o tema da expansão paulista. Foi coordenado pela professora Laura Mello e Souza e pelo professor André Sekkel Cerqueira. O 2º colóquio, ocorrido no dia 19 de maio passado, tratou da vida e obra de Rubens Borba de Moraes, com coordenação da professora Ana Maria Camargo e do professor Briquet de Lemos. O 3º colóquio, no dia 19 de novembro, abordou a obra de Antonio Candido,Os Parceiros do Rio Bonito, e foi organizado pelo professor Celso Lafer e exposto pelo professor José de Souza Martins.