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O Brasil tem cana transgênica (1 notícias)

Publicado em 29 de novembro de 2004

Por Moacyr Castro escreve de Ribeirão Preto para 'O Estado de SP':
Tudo vai depender do que o mercado precisar e das características dos genes que já começam a ser modificados para a cana-de-açúcar deixar de ser só aquela gramínea cultivada no Brasil desde Martim Afonso de Souza e se transformar numa 'biofábrica' de plástico, papel, ração, fertilizantes, tecidos, proteínas, próteses, colágeno, medicamentos, vacinas, plasma sanguíneo-insulina, quem diria! - e até açúcar, álcool, cachaça, melado e rapadura. A cana transgênica já existe em Piracicaba há dez anos, mas o canavial dos laboratórios ainda é maior do que o do campo. Lavoura comercial só daqui a cinco anos, acredita o cientista William Lee Burnquist, coordenador de tecnologia do Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), em Piracicaba, mantido até este ano só pela Copersucar, e agora conduzido por 95 usinas brasileiras em convênio com a Fundação de Amparo à Pesquisa de SP (Fapesp), Universidades e núcleos de investigação do Brasil e do exterior. As metas das pesquisas, que nos últimos dez anos consumiram R$ 32 milhões, são as mesmas para outras lavouras economicamente importantes: expandir a fronteira para solos hoje inadequados; elevar a produtividade; reforçar a resistência às pragas e doenças, à seca e ao frio; reduzir custos de produção e preços de mercado, para manter a competitividade, 'já que a cotação das commodities cai, em média 2% ano', compara William. O Brasil cultiva 25% dos canaviais do mundo e SP, 60% da cana brasileira. A saga se resume à busca eficiente e precisa de genes que tenham em sua bagagem características que interessem à cana. Assim, se for descoberto em um peixe o gene de uma proteína que favoreça o desenvolvimento do canavial, pode-se inocular esse gene protéico no pé de cana e avaliar os resultados. Se uma variedade de arroz tem raízes que melhorem a captação dos nutrientes para a cana, 'cruza-se' arroz com cana. São as plantas geneticamente modificadas, que a natureza não criou, mas permite ao homem criá-las em seu benefício. Resistência O experimento mais adiantado é o da cana resistente a herbicidas. Ele deu ao CTC, à Embrapa e à Monsanto o primeiro certificado brasileiro de biossegurança. O gene, alemão, já existia no mercado. Ele é originário de uma bactéria e, incorporado à cana, não deixa que ela seja afetada pela aplicação do herbicida usado no trato do canavial. No cálculo do custo da produção de um futuro canavial resistente, por exemplo, o uso de herbicida que hoje consome US$ 42,00 por hectare, nos ensaios, esse valor cai pela metade. Outro alvo é a cana resistente à broca, praga que afeta quase todas as plantações, causada por uma mariposa chamada Diatrea sacharalis. Por enquanto, poderá ser mais difícil e menos interessante, economicamente, investir nessa variedade. É que o controle biológico, natural, com a vespa Cotesia flavipes custa R$ 8,00 por hectare, 'muito barato', observa William. Para as empresas, na hora de estabelecer a economia de escala, pesa a lucratividade do trato dos 20 milhões de hectares de soja ou dos 13 milhões de milho em relação aos 5 a 6 milhões de hectares de canaviais. Mesmo assim, estudos para melhorar a qualidade e as conveniências da cana-de-açúcar continuam, atrás de variedades transgênicas resistentes ao mosaico, à escaldadura e ao amarelinho, que atacam as folhas; aos nematóides, que esfarelam as raízes; e ao carvão, mal ' semelhante à vassoura-de-bruxa, que dizimou plantações de cacau na Bahia. Empecilhos O Brasil já podia estar colhendo sua cana transgênica, afirma William, mas dificultam o avanço dos trabalhos e o necessário licenciamento por parte da CTNBio a falta de regulamentação legal, de conhecimento técnico suficiente dos organismos reguladores e de percepção por parte da opinião pública da importância social e econômica dos produtos obtidos a partir de modificações genéticas. O presidente Lula foi alertado para esse atraso por uma carta assinada por 304 cientistas enviada a ele em junho do ano passado. Em contrapartida, esses empecilhos aceleraram as investigações que levaram ao genoma da cana. O Projeto Genoma livra o país da dependência exclusiva de genes importados. O seqüenciamento genético comprovou que a planta é das mais complexas do mundo vegetal, tanto quanto a estrutura genética do homem. Foi o primeiro programa inteiramente executado por cientistas brasileiros. Começou em 1999, com a parceria entre a Fapesp, Universidades e o setor sucroalcooleiro, em particular com o CTC. O foco das sondagens fecha-se nos genes relacionados à produção de sacarose, resistência a doenças e capacidade de adaptação a clima e solos. Ou seja, esperam-se variedades de cana que dêem mais açúcar e, conseqüentemente, mais álcool; agüentem terras mais áridas e suportem mais a falta de chuvas. Com o múltiplo desdobramento do genoma, o novo desafio é à própria natureza. Mas antes mesmo de se conseguir 'esticar' a safra, com variedades que virão prontas para 'dar' o ano inteiro, é possível explorar ao máximo as instalações das usinas, visando à produção de um número cada vez maior de subprodutos. É a 'biofábrica', preconizada por William e o exército de mais de 200 cientistas que hoje estudam a cana-de-açúcar. 'Cada novo gene é nova 'máquina' introduzida nessa fábrica chamada cana', compara o cientista. Os subprodutos conferem uma característica curiosa à cana-de-açúcar. Por causa deles, ficou errado falar em 'monocultura da cana'. Afinal, que monocultura é essa que oferece centenas de derivados o ano inteiro? Bombardeiro Pela técnica de cultura de tecidos, se produz a 'massa' de células de cana. Dentro de uma caixa metálica, elas são bombardeadas por tiros de minúsculas esferas de tungstênio, disparadas pelo canhão de genes que revestem as bolinhas, bem menores do que a ponta das canetas esferográficas. Elas penetram e estouram a massa. Em alguns casos, os tiros não são fatais - o projétil se aloja perto do núcleo da célula, o gene se descola do tungstênio e se incorpora ao patrimônio genético das células. Em seguida, essa massa permanece na presença de hormônios em meio de cultura (agar), onde se formam as canas transgênicas. Tudo acontece nas prateleiras do laboratório, desde as pequeninas, abrigadas em placas de Petri e tubos de ensaio, até em prosaicos vasos de jardim. Esse canavial de sobreviventes viceja, há um ano, ao lado da 'biofábrica' do CTC e já tem 0,5 hectare (5 mil metros quadrados). É nesse cenário que se desenvolvem experimentos para a obtenção de cana resistente a herbicidas. Ainda nas placas de Petri, são aplicados os defensivos para testar a resistência. As sobreviventes vão para o campo. Nesse 'jardim' da 'biofábrica' também trabalha a cientista Sabrina Moutinho Chabregas, como William formada na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP. Há oito anos pesquisadora de cultura de tecidos e transformação genética, ela garante que não conhece produto de cultura transgênica que tenha afetado a saúde de alguém. 'Os transgênicos é que podem garantir qualidade, produtividade, quantidade e alimentos baratos e mais nutritivos - não há outro caminho.' Sabrina reforça a convicção: 'Nas pesquisas para chegar à cana transgênica resistente a herbicidas, a biodiversidade dos canaviais não se alterou.' Ela aposta na possibilidade, sem exagero, de obter cana ou outro alimento, com mais vitaminas, capacidade antiviral ou enriquecida de aminoácidos. E insulina? 'Por que não? É uma proteína' (O Estado de SP, 28/11)