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IstoÉ

O almanaque olímpico do Brasil

Publicado em 21 dezembro 2011

Por Por Rodrigo Cardoso

UM PAR DE BRINCOS VISTOSOS, BATOM COR-DE-ROSA, cabelos bem escovados, calça e camisa social. Apesar dos 84 anos e da doença de Alzheimer, Helena Cardoso Menezes fez questão de estar impecável para receber a visita de um grupo de estudiosos interessados em vasculhar uma das maiores relíquias dessa senhora: seu passado como atleta olímpica. Com a ajuda do marido, que espalhou fotos antigas sobre uma mesa, Helena destrinchou suas histórias vividas nas Olimpíadas de 1948, em Londres, e de 1952, em Helsinque. Aos 14 anos, ela começou a praticar esporte. Seu forte sempre foi o atletismo - principalmente as provas de velocidade. Aos 21, credenciou--se para representar o Brasil na Olimpíada de Londres, na Inglaterra, onde correu os 100 e 200 metros rasos. Quatro anos mais tarde, repetiria o feito nos Jogos de Helsinque, na Finlândia, competindo nos 100 metros e no salto em distância. Helena não conquistou medalhas e, por isso, seu nome não é citado como uma heroína olímpica. Como outros ex-atletas, porém, ela está prestes a deixar o anonimato para se tornar um verbete destacado da primeira enciclopédia olímpica do Brasil. O projeto é resultado de um trabalho meticuloso que vem sendo executado por uma equipe de 20 pesquisadores coordenados pela professora Katia Rubio, da Fscola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP).

Com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), a enciclopédia irá escrever a história do esporte olímpico nacional pela ótica dos atletas, algo jamais feito no Brasil. Mesmo sem subir no pódio com uma coroa de ramos sobre a cabeça, a história de Helena vale ouro. "Dar voz a vencedores e não vencedores é olhar para o esporte olímpico com uma grande angular", diz Katia, que, como psicóloga do esporte, também coordena uma equipe multiprofissional responsável pelos times olímpico e paraolímpico da Confederação Brasileira de Tênis de Mesa. Ela vem batendo à porta de todos os brasileiros que um dia

foram atletas olímpicos - o País iniciou sua participação nos Jogos em 1920, na Antuérpia, na Bélgica. Somente para o Rio de Janeiro já foram realizadas 12 viagens. Em uma dessas oportunidades, um grupo de cinco pessoas se instalou em um apartamento alugado e, durante uma semana, realizou 50 entrevistas. Um outro pesquisador da equipe, responsável por procurar todos os atletas do judô, já rodou 22 mil quilômetros de carro. "Aonde tem olímpico, a gente vai atrás", diz a professora da USP, que já esteve na Europa à procura de esportistas.

Cada um dos 1.667 atletas que pisaram em solo olímpico será imortalizado pela enciclopédia, que deve ser finalizada e publicada em 2015, um ano antes dos Jogos do Rio de Janeiro. Para chegar a esse número, a equipe cruzou dados do Comitê Olímpico Internacional, de Museus Olímpicos, como os de Barcelona e Los Angeles, e de arquivos nacionais. A equipe da USP, por meio de entrevistas e pesquisas, já levantou 537 histórias, de atletas da ativa, ex-atletas e esportistas que já morreram. A 2016 teve acesso com exclusividade aos dados preliminares da enciclopédia (leia quadros). Foi possível observar, por exemplo, que a idade média em que os atletas brasileiros estreiam em Olimpíadas é de 21 anos, que o sobrenome Silva é o mais presente entre os olímpicos do País e que os paulistas são os que mais participaram de edições do evento. As descobertas mais profundas, entretanto, têm surgido nas entrevistas concedidas por aqueles que estiveram no front das competições. Katia, que tem vivido dias de espectadora privilegiada da vida dos atores principais do maior espetáculo esportivo do planeta, dá seu veredicto: "É um verdadeiro milagre o Brasil ter conquistado as medalhas olímpicas que possui."

Segundo a pesquisadora, as 91 medalhas olímpicas obtidas por 273 atletas brasileiros se devem essencialmente a talentos individuais e à determinação de alguns esportistas iluminados. Não fosse a crônica falta de estrutura, esse passado seria muito diferente. Katia cita o caso da carioca Aida dos Santos, hoje com 74 anos. Em 1964, aos 27 anos, ela foi a única mulher presente na delegação brasileira nos Jogos de Tóquio, no Japão. Lá, competiu sozinha na prova de salto em altura, sem ser acompanhada por técnico, dirigente ou qualquer outro atleta. Quando, por motivo de contusão, precisou de suporte médico, teve de recorrer ao socorro da equipe de Cuba. Mesmo assim, Aida conquistou a quarta colocação no torneio. "Um pouquinho de estrutura e a história dessa mulher poderia ter sido outra", diz Katia. "Se não houver uma profissionalização verdadeira, a possibilidade de o Brasil ganhar medalhas será cada vez menor." Levantamentos históricos como o da enciclopédia poderão não apenas iluminar o passado, mas ajudar a construir um futuro olímpico vitorioso para os atletas brasileiros.

"OS BRASILEIROS NAO ESTÃO PREPARADOS PARA GANHAR"

Professora da USP responsável pela elaboração da enciclopédia e autora de 16 livros dedicados à área esportiva, Katia Rubio explica por que o Brasil está muito longe de ser uma potência olímpica

Por que o Brasil não é uma potência olímpica?

Um problema grave é a falta de nacionalização do esportle no País. Há um inchaço da estrutura no eixo Rio-São Paulo. São quatro os centros de esporte no País. incluindo na lista Minas Gerais e Porto Alegre. Se o sujeito quer ser alguém na vida. tem de deixar a sua terra natal. No atletismo, por exemplo, a confederação fica em Manaus, mas os principais centros são em São Paulo e no Rio.

Qual é o prejuízo desse processo?

Esses deslocamentos feitos pelos atletas não provocam, na maioria dos casos, o retorno deles á terra natal. Eles têm o desgarramento das origens e. muitas vezes, passam a negá-las. Isso não contribui em nada para a mudança do cenário. O Vicente Lenílson. do atletismo, saiu de Natal para treinar no Rio e contou que passou um ano sendo tratado como um cachorro no centro de treinamento. Vejo histórias que lembram os 12 trabalhos de Hércules: os atletas têm de se provar a cada instante se o desejo dotes é esse mesmo. No basquete feminino, o desenvolvimento ocorre basicamente no interior paulista. E as meninas vêm do Brasil inteiro para lá jogar. A Iziane veio do Maranhão. A Micaela, do interior do Rio. Como é que se pode pensar no desenvolvimento do esporte sem que haja de fato uma nacionalização do ponto de vista geográfico?

O esporte é o espelho da realidade social do País.

Não chega água. não chega comida, então o esporte também não vai chegar nessas regiões. Isso também é um denunciador das desigualdades regionais que o Brasil enfrenta. E a comprovação do que foi preconizado por Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro.

E aí a gente vê proliferar os chamados projetos sociais. Muitos não têm a função de formar para o alto rendimento. Eles cumprem um objetivo que, como diz o nome. visa apenas educar e promover cidadania. Mas o que fazemos com os mais habilidosos7 Se não estimularmos o desenvolvimento deles, estaremos promovendo um tipo de exclusão às avessas. Oferecer apenas projetos sociais é como dar uma balinha para esses excluídos. Soa quase como um cala a boca. Muita gente diz que também falta preparo psicológico para os atletas brasileiros. É clássico no País alguém dizer para o atleta: "Você já ganhou ténis, calçado, ganha um lanche todo dia e ainda quer vencer o campeonato7" Quando comecei a entrevistar os olímpicos que não venceram, entendi a psicodinâmica do nosso esportista em relação à vitória. É comum o atleta brasileiro enfrentar estrangeiros que estão preparados para ganhar tanto do ponto de vista técnico quanto emocional. Sem saber que eles são treinados para isso. os brasileiros passam a se sentir mal diante de tanta superioridade. Grande parte de nossos atletas não é preparada para ganhar, mas para participar. O atleta vencedor é aquele que entra para ganhar. O Zé Marco (prata em 2000 no vôlei de praia) é natural da Paraíba, treinou a vida inteira em João Pessoa e fez dupla com o Ricardo. Ele fala: "Diante de tudo o que vivi. a prata foi mais do que ouro".

Hoje, porém, temos o Cesar Cielo, um supercampeão.

Nadadores australianos e americanos sempre olharam por cima dos adversários. Até que chegou o Cielo e olhou desse mesmo jeito. No Brasil, essa pretensão, fundamental para o atleta ser vitorioso, é vista como arrogância. Como o atleta não quer ser tratado como arrogante, é aí que ele não desenvolve o personagem necessário para enfrentar esse tipo de situação. Esse discurso vencedor passa por uma apropriação da possibilidade da vitória. Se o brasileiro não fizer essa apropriação, provavelmente sucumbirá. Já passamos do patamar da falta de recursos e conhecimento no esporte. Temos a necessidade de apropriação de um discurso vencedor. 0 que eu ouço de atletas é o encantamento de ter ido aos Jogos. Dizem que era tudo o que eles queriam. Esse discurso está errado. Se o esporte competitivo quiser crescer, é preciso preparar os atletas para que eles digam e acreditem que desejam ir para ganhar medalha. Do contrário, a Vila Olímpica continuará a ser um grande hotel, com baladas e grandes festas, e a participação nos Jogos será o grande prêmio.

A falta de estrutura também não atrasa o desenvolvimento do esporte brasileiro?

Nas minhas conversas com atletas do boxe, por exemplo, não encontrei um ambiente saudável de treinamento. Há lugares insalubres, mofados, fedidos, escuros. É o porão1 Ou seja. os atletas se sentem mal tratados, desprezados. Como. então, fazer um campeão7 Essa questão da autoestima é uma construção individual, mas também social. Se não houver apoio, muitas modalidades vão continuar nos porões.

Como o homossexualismo, assunto tabu em qualquer esfera esportiva foi tratado em suas entrevistas1

Mulheres e homens entrevistados e reconhecidamente gays não tocam no assunto com a câmera ligada. 0 esporte é uma atividade que nasceu masculina e foi construída socialmente buscando provar a virilidade, força, coragem e determinação, atributos identificados como masculinos. Os atributos tidos como femininos são a fragilidade, beleza, docilidade, maternidade. Então, as mulheres atletas assumem a coragem, a combatividade, a força e muitas se maquiam-para afirmar a sua condição feminina e o fazem mesmo que sejam gays. 0 enfrentamento do preconceito é mais difícil do que ganhar uma medalha olímpica.

A vida pós-sucesso costuma ser difícil para ex-atletas. Por que isso acontece?

E impressionante o que está acontecendo com aqueles que estão na casa dos 45. 50 anos e que não se prepararam para ser outra coisa na vida a não ser atleta. Fico pensando no que se tem de fazer de política pública para dar apoio a essas pessoas, porque elas estão esquecidas. O atleta vive intensamente essa identidade porque começa muito cedo. quando criança, Na adolescência, ele breca a vida social para ser atleta. Dedica-se na fase adulta a fazer apenas e somente isso. Aos 30 e poucos tem de aposentar essa identidade, mas, na verdade, não vive uma aposentadoria, e sim uma espécie de morte. Ele precisa renascer, recriar uma nova identidade para seguir adiante. Se esse sujeito não exercitou outros papéis sociais, a morte que ele vive aos 30 anos. às vezes, se prolonga.

Como fazer essa transição?

O processo demanda diferentes tipos de esforços porque exige do atleta não apenas uma mudança de vida nas suas questões materiais, mas principalmente no que se refere a uma nova identidade. 0 atleta é uma pessoa publicamente reconhecida porque seus feitos o são. Ele passa a se acostumar com o assédio e a perda da sua privacidade, em muitos casos. Com o advento do profissionalismo, depois dos anos 80, a questão financeira passou a fazer parte desse quadro à medida que alguns atletas conseguiram acumular dinheiro e, em alguns casos, fortunas. Aqueles que conseguiram ter uma boa gestão da carreira terminam a vida produtiva no esporte e vão se dedicar a outros negócios, formando uma nova identidade. Viram a página. Entretanto, a grande maioria não se prepara para isso.