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Novos estudos enriquecem o conhecimento dos fatores genéticos que protegem naturalmente as pessoas contra a COVID-19 (33 notícias)

Publicado em 22 de novembro de 2022

Dois artigos recentes de pesquisadores brasileiros contribuíram para o entendimento científico dos fatores genéticos que protegem as pessoas contra a infecção pelo SARS-CoV-2 ou impedem a progressão para a COVID-19 grave. Um relata os resultados de um estudo envolvendo um grupo de idosos resilientes com 90 anos ou mais, e o outro analisa um caso de COVID-19 grave em gêmeos idênticos, dos quais apenas um sofria de sintomas de longo prazo da doença.

Desde 2020, pesquisadores de vários países, inclusive do Brasil, buscam genes que confiram proteção contra o novo coronavírus, seja prevenindo a infecção ou evitando a progressão para doenças graves, na esperança de que esse conhecimento contribua de forma vital para o desenvolvimento de vacinas e tratamentos para doenças virais.

“Se pudermos realmente provar que alguns genes promovem resistência ao SARS-CoV-2, o mesmo pode ser verdade para outros vírus. Mais pesquisas podem se basear nessas descobertas para tentar entender os mecanismos subjacentes a essa resiliência e desenvolver medicamentos que aumentem a proteção contra infecções virais”, Mayana Zatz, principal autora dos artigos publicados na Fronteiras periódicos, disse à Agência FAPESP.

Zatz é professor de Genética Humana e Médica do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) e dirige o Centro de Pesquisas do Genoma Humano e Células-Tronco (HUG-CELL), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) da FAPESP ).

Em um dos estudos, os cientistas se propuseram a identificar genes que conferem resistência ao SARS-CoV-2 e entender os mecanismos envolvidos em dois extremos: idosos resistentes à doença mesmo quando apresentavam comorbidades; e pessoas mais jovens sem comorbidades que desenvolveram COVID-19 muito grave, chegando a morrer em alguns casos.

Em um estudo, os pesquisadores analisaram conjuntos de dados para uma coorte de 87 “super-idade resilientes” – pacientes com mais de 90 anos que se recuperaram de COVID-19 leve ou permaneceram assintomáticos após testar positivo para SARS-CoV-2. A idade média era de 94 anos. Uma mulher tinha 114 anos na época do estudo e foi considerada a paciente mais velha a se recuperar da doença no Brasil.

Eles compararam os dados desses pacientes com dados de 55 pacientes com menos de 60 anos que se recuperaram ou morreram de COVID-19 grave e com um banco de dados contendo sequências genômicas completas de idosos residentes em São Paulo.

Em particular, eles analisaram uma região do cromossomo 6 conhecida como complexo principal de histocompatibilidade (MHC), um segmento de DNA polimórfico com cerca de 130 genes que codificam muitas das moléculas envolvidas nas respostas imunes inatas e adquiridas. Esta análise exigiu equipamentos e ferramentas especiais.

Eles também analisaram o exoma (a sequência de todos os éxons), refletindo a porção de codificação de proteína dos genomas em questão.

A infecção por SARS-CoV-2 foi confirmada por testes de RT-PCR de amostras coletadas no início de 2020, antes do início da vacinação em massa contra a COVID-19.

Os pesquisadores chegaram a três resultados muito importantes, dois dos quais só foram possíveis pelo uso de amostras de uma população altamente miscigenada em termos de etnia e ancestralidade.

A primeira foi que a frequência de variantes do gene MUC22 foi duas vezes maior no grupo leve de COVID-19 do que em pacientes graves, e ainda maior em super-idade resilientes. Esse gene pertence à família das mucinas e está associado à produção de muco, que lubrifica e protege as vias aéreas. Por outro lado, a superprodução de muco tem sido associada à inflamação pulmonar típica do COVID-19 grave.

Essas mutações no MUC22 são tecnicamente denominadas variantes “missense”, alterações no DNA que resultam em diferentes aminoácidos sendo codificados em posições específicas nas proteínas resultantes. Segundo o artigo, eles podem enfraquecer as respostas imunes hiperativas ao SARS-CoV-2 e desempenhar um papel importante na proteção das vias aéreas contra o vírus. Uma das hipóteses levantadas pelos autores é, portanto, que os indivíduos resilientes podem ter um controle ótimo da produção de mucina.

“Pode ser que as variantes missense interfiram não apenas na produção de muco, mas também em sua composição, uma vez que os aminoácidos são trocados. Precisamos realizar mais estudos para entender como eles agem durante infecções e em pessoas saudáveis”, disse Erick Castelli, um pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (FM-UNESP) em Botucatu e primeiro autor do artigo, ao lado de Mateus Vidigal, pós-doutorando do HUG-CELL.

O jornal é publicado em Fronteiras da Imunologia.

Outro ponto a ser investigado é a ligação entre variantes do MUC22 e aumento da expressão de um microRNA denominado miR-6891. Pesquisas envolvendo bancos de dados genéticos mostraram que esse microRNA está associado ao genoma viral. Os autores levantam a hipótese de que a maior expressão de miR-6891-5p associada a todas as variantes protetoras do MUC22 pode, de alguma forma, reduzir a reprodução viral nas células e contribuir para sintomas menos graves durante a infecção por SARS-CoV-2.

conhecimento acumulado

Os outros dois resultados importantes do estudo estão relacionados a variantes genéticas mais frequentemente encontradas em africanos e sul-americanos. Um deles é o alelo *01:02 do gene HLA-DOB. A análise computacional sugeriu que o HLA-DOB pode influenciar a localização celular e o tráfego da proteína, possivelmente levando à apresentação inadequada do antígeno – o processo pelo qual macrófagos e outros tipos de células capturam o antígeno, permitindo seu reconhecimento por células T citotóxicas, desencadeando assim uma resposta a um corpo estranho. Os pesquisadores concluíram que o movimento da proteína do interior da célula para sua superfície poderia ser modificado, piorando a infecção. A frequência desse gene foi três vezes maior em casos graves do que em casos leves de COVID-19.

“Esta é a segunda vez que esta variante HLA-DOB foi detectada em nossa pesquisa. Nós a encontramos em nosso estudo de casais, onde foi associada a casos de COVID-19 em comparação com indivíduos não infectados”, disse Castelli. “Desta vez, encontramos em casos graves. Só conseguimos localizá-lo devido à composição mista de nossas amostras, com componentes ancestrais africanos e sul-americanos. A maioria das pesquisas nesse campo é feita na Europa e é improvável que encontre lá.”

Castelli se referia a um estudo publicado em 2021, por um grupo que incluía ele, Zatz e Vidigal, e que deu os primeiros passos para entender por que algumas pessoas são naturalmente resistentes à infecção pelo SARS-CoV-2 e outras não. Os pesquisadores analisaram o material genético de 86 casais denominados discordantes, no sentido de que apenas a esposa ou o marido foi infectado, embora ambos tenham sido expostos ao vírus.

Os resultados sugeriram que certas variantes genéticas encontradas com mais frequência em indivíduos resilientes foram associadas a uma ativação mais eficiente de células de defesa conhecidas como natural killers (NKs). Quando as NKs são ativadas corretamente, elas são capazes de reconhecer e destruir as células infectadas, evitando que a doença se desenvolva no organismo.

Segundo Vidigal, que teve importante participação na coleta das amostras, a coorte em si é significativa. “Analisamos os extremos, tanto em termos de casos – leves, graves e fatais – quanto em idade, focando nos super-idosos. Continuamos acompanhando esses pacientes e estamos desenvolvendo novos projetos com centenários”, disse.

O terceiro resultado importante teve a ver com o HLA-A, um dos genes responsáveis ​​por criar uma “janela” na superfície celular para mostrar às células de defesa quais proteínas estão dentro da célula. Uma variante desse gene apareceu duas vezes mais em pacientes graves com COVID-19.

Pós-COVID

No outro estudo, os cientistas analisaram um caso de gêmeos monozigóticos (idênticos), então com 32 anos, que apresentavam simultaneamente COVID-19 grave. Eles foram hospitalizados e receberam suporte de oxigênio, apesar de sua idade e boa saúde anterior. Coincidentemente, eles foram admitidos diretamente na terapia intensiva e intubados no mesmo dia. No entanto, um dos irmãos passou mais uma semana internado e só este gémeo teve COVID de longa data, continuando a sofrer de cansaço e outros sintomas mesmo sete meses após ter sido infetado.

Depois de analisar os perfis das células imunes dos gêmeos e as respostas específicas ao vírus, bem como sequenciar seus exomas, os pesquisadores concluíram que suas diferentes progressões clínicas reforçaram o papel da resposta imune e da genética na apresentação e no curso da doença.

Em um artigo sobre o estudo publicado na Fronteiras da Medicina eles observam que a evolução clínica dos irmãos foi diferente, apesar de compartilharem as mesmas mutações genéticas potencialmente associadas a um risco aumentado de desenvolver COVID-19 grave, e que a síndrome pós-COVID observada em um deles apontava para uma associação entre a permanência hospitalar e a ocorrência de sintomas prolongados de COVID.

“Casos envolvendo sete pares de adultos gêmeos idênticos que morreram em decorrência da doença com apenas alguns dias de diferença já haviam sido registrados no Brasil, chamando a atenção para o componente genético da doença. Quando soubemos desses irmãos gêmeos que tiveram COVID-19 grave ao mesmo tempo e só descobriram o fato no hospital, quisemos investigar. O fato de terem sido infectados simultaneamente e terem desenvolvido a forma grave da doença reforçou a hipótese do fator genético”, disse Vidigal, primeiro autor do artigo.

Os parâmetros sistêmicos alterados associados à fadiga pós-COVID incluíram ferritina (uma proteína produzida pelo fígado e envolvida no metabolismo do ferro do corpo) e creatina-quinase (uma enzima encontrada no coração, cérebro e músculo esquelético).

“Em estudos como esses, o trabalho em equipe é extremamente importante, pois envolvem genômica, imunologia e avaliação clínica, entre outras disciplinas”, disse Zatz. “Quando você quer responder a perguntas complexas, deve saber como projetar o experimento e identificar os pacientes que podem ajudá-lo a encontrar as respostas, e isso não é fácil.”

A dificuldade é tão grande que em outubro passado uma equipe internacional de pesquisadores publicou na Natureza uma chamada para pessoas conhecidas por serem geneticamente resistentes ao SARS-CoV-2.