Pesquisadores não descartam a possibilidade de a infecção deixar algum tipo de sequela no sistema de defesa contra patógenos
Experimentos conduzidos na Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto indicam que o novo coronavírus é capaz de infectar e levar à morte diferentes tipos de linfócitos – células-chave na defesa do organismo contra patógenos. Não se sabe ainda se há queda na imunidade decorrente desse ataque e qual seria a sua duração, mas os pesquisadores não descartam a possibilidade de a infecção deixar algum tipo de sequela no sistema de defesa.
Resultados da pesquisa, apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), foram divulgados no repositório bioRxiv. O artigo é de autoria do pós-doutorando Ronaldo B. Martins e dos doutorandos Marjorie C. Pontelli e Ítalo A. Castro. Eles foram coordenados pelo virologista e professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP) Eurico Arruda.
“Logo no início da pandemia percebeu-se que a linfopenia [queda acentuada na contagem de linfócitos do sangue] era uma alteração hematológica frequente em pacientes com Covid-19 hospitalizados e que esse quadro estava associado a um prognóstico ruim, ou seja, maior risco de intubação e morte. Mas até agora não estava claro qual era a causa do problema”, conta Eurico Arruda.
Durante uma infecção viral, explica o cientista, é esperado que parte das células de defesa saia da circulação e migre para o tecido afetado para ajudar no combate aos invasores. Contudo, autópsias de pacientes que morreram em decorrência da síndrome respiratória aguda grave associada ao SARS-CoV-2 mostraram que a quantidade de linfócitos presente nos tecidos infectados não era suficiente para explicar o quadro de linfopenia detectado quando essas pessoas ainda estavam internadas.
“Certamente deveria haver outro mecanismo envolvido. Decidimos então investigar se as células de defesa de pacientes com Covid-19 tinham o vírus em seu interior. Alguns grupos tinham descrito que a carga viral era praticamente indetectável no sangue, mas eles tinham olhado para o fluido como um todo. Nós isolamos apenas as células mononucleares [grupo que inclui monócitos e linfócitos] e fizemos uma espécie de concentrado de linfócitos”, explica Eurico Arruda.
Antes de analisar os leucócitos de pacientes, porém, os pesquisadores fizeram diversos experimentos com amostras sanguíneas de cinco voluntários saudáveis para testar a hipótese de que o SARS-CoV-2 seria capaz de infectar e matar linfócitos.
O concentrado de células mononucleares obtido a partir do sangue de doadores sadios foi incubado com o vírus durante dois dias. Com um anticorpo capaz de reconhecer antígenos do vírus no interior das células, os pesquisadores comprovaram que o processo de infecção tinha ocorrido. As análises mostraram que os monócitos foram as células mononucleares mais suscetíveis ao SARS-CoV-2 (44% estavam infectadas), seguidos pelos linfócitos T CD4 (responsáveis por coordenar a defesa imunológica por meio da liberação de moléculas sinalizadoras conhecidas como citocinas; 14%), linfócitos T CD8 (capazes de reconhecer e matar células infectadas pelo vírus; 13%) e linfócitos B (os produtores de anticorpos; 7%).
A carga viral no concentrado celular foi medida por RT-PCR – o mesmo teste molecular feito para diagnosticar a Covid-19 em pacientes – após seis, 12, 24 e 48 horas. Observou-se um aumento consistente da quantidade de vírus, que chegou a ser 100 vezes maior na última análise. Tal resultado indicava que o microrganismo não apenas tinha entrado nas células mononucleares de voluntários como também estava se replicando em seu interior.
“Quando tratamos a cultura com um composto capaz de inibir a protease usada pelo SARS-CoV-2 para se replicar, observamos uma redução importante da carga viral. Esse é mais um indício de que o vírus estava se replicando nessas células, mas ainda não sabemos em quais delas exatamente”, afirma Eurico Arruda.
Em outro experimento, o grupo tentou bloquear a infecção com um inibidor de ACE2 – a proteína usada pelo microrganismo para entrar na célula humana, normalmente expressa em baixas quantidades nas células mononucleares do sangue.
“O tratamento com inibidor de ACE2 reduziu a carga viral na cultura, mas não a aboliu totalmente, o que sugere a existência de um mecanismo alternativo de infecção em células linfoides. Isso não é algo raro entre os vírus, que podem usar variadas moléculas para se ligar a diferentes tipos de células, a exemplo de HIV e adenovírus”, relata o coordenador da pesquisa.
Ao investigar mais detalhadamente os linfócitos T CD4 e T CD8 infectados, os cientistas notaram que a entrada do vírus desencadeou um mecanismo de morte celular programada conhecido como apoptose. Segundo Eurico Arruda, essa é uma possível explicação para a linfopenia observada em pacientes com Covid-19.
A etapa seguinte da pesquisa foi feita com células mononucleares de 22 pacientes internados em Unidade de Terapia Intensiva (UTI), com quadros moderados ou severos de COVID-19. O material foi coletado entre os dias 7 de abril e 18 de junho no Hospital das Clínicas da FMRP-USP.
As análises mostraram que nem todos os indivíduos tinham em seus leucócitos uma marcação expressiva para a presença do vírus e que a taxa de células positivas variava bastante entre eles – de 0,16% a 33,9%. “Os pacientes tinham perfis clínicos variados e estavam em diferentes estágios da doença, o que dificultou a comparação. Mas o fato é que conseguimos identificar a presença do vírus no interior das células mononucleares de portadores da COVID-19”, diz Eurico Arruda.
O grupo selecionou amostras de 15 indivíduos para analisar as diferenças individuais nas taxas de células positivas para SARS-CoV-2. Para isso, os pacientes foram estratificados com base no tempo de coleta de amostra após o início dos sintomas. Essa análise evidenciou que as taxas de linfócitos B infectados foram as mais altas em todos os indivíduos. Isso poderia ajudar a entender por que algumas pessoas quase não apresentam anticorpos após a infecção – hipótese atualmente em investigação. Já no caso dos monócitos, quanto mais avançada estava a doença, maiores eram as taxas de células positivas – resultado semelhante ao observado para os linfócitos T CD4.
Por meio de técnicas como imunofluorescência e microscopia confocal, os cientistas confirmaram a presença de uma fita dupla de RNA viral no interior das células infectadas – um indicativo de que o patógeno, cujo genoma é composto por uma fita simples de RNA, estava em processo de replicação.
“O conjunto de dados sugere, portanto, que o novo coronavírus pode infectar e se replicar nos linfócitos. Isso é um potencial complicador, pois pode deixar o paciente suscetível a infecções oportunistas e os hospitais estão repletos de bactérias resistentes. Os médicos precisam estar atentos a esse fato. Além disso, ainda não sabemos que tipo de efeito tardio isso pode ter no sistema imune, só descobriremos mediante investigações a serem feitas no seguimento dos pacientes convalescentes”, destaca o virologista.
* Karina Toledo, da Agência FAPESP