Uma reação química estudada há muitos anos pela indústria alimentícia, por seu papel no paladar e na deterioração dos alimentos, tornou-se o alvo de atenção da pesquisa bioquímica. Poderá resultar em terapias para doenças que variam de complicações decorrentes de diabetes até as doenças do cérebro como o mal de Alzheimer.
A reação Maillard, descrita pela primeira vez em 1912, é uma reação química espontânea entre açúcares e proteínas, que produz o dourado dos alimentos quando cozidos e, também, a deterioração dos alimentos guardados.
A primeira pista de que açúcares e proteínas poderiam reagir da mesma maneira no organismo, e de que essa reação poderia ter um papel nas doenças, surgiu em 1977. Anthony Cerami, então pesquisador do Instituto Rockcfeller de Nova York, estava estudando uma proteína anormal conhecida como hemoglobina AIc, que ocorre no sangue de diabéticos. Ele descobriu que o açúcar na corrente sangüínea pode reagir com a hemoglobina normal para formar a AIc, uma hemoglobina "glicosada".
Desde então cresceu a evidência de que as proteínas glicosadas - proteínas acrescidas de cadeias de açúcar, como conseqüência da reação Maillard - estão envolvidas em várias doenças que atingem os diabéticos.
A idéia de que a reação Maillard também poderia estar envolvida em doenças cerebrais foi proposta em 1994 por Camilo Colaço e Charles Harrington, pesquisadores da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Uma característica comum de várias doenças, incluindo as de Alzheimer, Parkinson e Creutzfeldt-Jakob, é a formação de depósitos insolúveis de proteínas, denominados placas de amilóides, que se acumulam no cérebro.
Apesar de se saber, há algum tempo, que essas proteínas modificadas são derivadas de proteínas celulares normais, o mecanismo para sua formação ainda é desconhecido. Colaço e Harrington sugeriram que a reação Maillard pode causar essa modificação.
A reação, descrita inicialmente pelo francês Louis-Camille Maillard em 1912, é na verdade uma cascata química. O primeiro passo requer muito pouca energia para se efetivar e é reversível na presença de água (o que explica por que as salsichas não ficam douradas no forno de microondas). Depois, ocorre uma cascata complexa, provocando, no fim, a produção de proteínas glicosadas e pigmentos amarelos. Esses pigmentos causam o dourado característico de alimentos fritos, grelhados e assados.
A possibilidade de existir um vínculo entre a reação de Maillard e as doenças cerebrais ocorreu a Colaço em conseqüência de uma pesquisa realizada pela empresa de biociências Quadram Holdings Cambridge, cuja especialidade é a utilização de um açúcar que ocorre naturalmente, chamado de "trehalose", na conservação de produtos farmacêuticos, alimentos e sangue. (As plantas e animais do deserto conseguem a animação suspensa durante a seca mediante a substituição de suas moléculas de água por "trehalose").
Ao compararem a ação conservante da "trehalose" com a de outros açúcares, os pesquisadores da Quadram notaram que, embora existam vários açúcares capazes de impedir danos às proteínas durante a seca, os produtos deterioram-se à temperatura ambiente. A investigação mostrou que isso se deve a uma reação espontânea entre o açúcar e a proteína: o que os pesquisadores estavam testemunhando era a reação Maillard. A indústria alimentícia estava ciente, há muito tempo, de que essa reação causa a deterioração: em alimentos com altos teores de açúcar e proteínas, a reação é até observada durante o armazenamento refrigerado. "Mas a indústria farmacêutica não reconhecia essa reação como um problema no uso de açúcares para estabilizar os medicamentos à base de proteínas secas", afirma Colaço.
Ao examinar algumas amostras deterioradas, Colaço (que anteriormente pesquisou as doenças neuro-degenerativas no Instituto de Pesquisa Médica de Londres), observou que as proteínas degradadas assemelhavam-se aos materiais isolados dos cérebros de pacientes afetados por doenças cerebrais, especialmente o mal de Alzheimer. Ele também estava a par da pesquisa que ligava a reação de Maillard às complicações diabéticas.
Após a percepção original de Cerami, encontrou ampla aceitação a idéia de que as complicações do diabetes desencadeadas tardiamente, incluindo a doença renal e a aterosclerose, devem-se a elevados níveis de açúcar no sangue, que promovem a formação de proteínas glicosadas. Os diabéticos podem ter dez vezes o nível normal de proteínas glicosadas em seu sangue.
Esse peso de evidência levou à procura de meios para impedir a formação de proteínas glicosadas, pela inibição da reação de Maillard ou pelo bloqueio de sua ação no organismo. Por exemplo, a Alteon, uma empresa de biotecnotogia de Nova Jersey, nos Estados Unidos, está realizando testes clínicos de um inibidor de Maillard denominado "pimagedine", para o tratamento da doença renal. O laboratório farmacêutico Hoechst Merrill Roussel adquiriu da Alteon a licença dos direitos a essa terapia.
Jim Mauser, o principal executivo da Alteon, reconhece a importância da reação de Maillard. "Os químicos da área alimentícia sabem dessa reação há muitos anos. Como seres humanos, com uma temperatura do corpo de 36.5 graus, estamos todos cozinhando lentamente."
Um encontro realizado em Cambridge, em 1994, reuniu pesquisadores acadêmicos e industriais para discutirem a importância da reação de Maillard nas doenças humanas e para avaliarem o interesse nas implicações médicas potenciais. Novo Nordisk, Wellcome, SmithKline Beecham, Glaxo, Unilever, Rhône-Poulenc, Rorer e Zeneca estavam entre as empresas representadas.
O Ministério do Comércio e Indústria da Grã-Bretanha está estudando uma proposta para financiar um programa de pesquisa conjunta sobre as implicações médicas da reação de Maillard.
Nesse meio tempo, novas evidências que vinculam a reação de Maillard a complicações diabéticas reforçaram a teoria de Colaço de que a reação está, também, envolvida em doenças cerebrais. Uma complicação é a catarata, uma condição em que as córneas dos olhos ficam opacas. A análise molecular da catarata mostra que ela contém proteínas modificadas, muito parecidas com as encontradas nos cérebros dos doentes do mal de Alzheimer. Além disso, os estudos em animais realizados pela Alteon indicam que os inibidores de Maillard "podem ter uma atividade significativa no mal de Alzheimer", segundo Mauser.
A implicação mais importante é que falhas no metabolismo de glicose (açúcar) têm um papel no desenvolvimento do mal de Alzheimer. Essa tese é apoiada por evidências da técnica de varredura do organismo, chamada de "tomografia de elétrons e pósitrons", que demonstram que os doentes de Alzheimer exibem um metabolismo anormal de glicose no cérebro.
"Essa conclusão poderia fornecer a primeira técnica de verificação para acompanhar a evolução da doença", afirma Colaço. Essa técnica também teria valor inestimável para avaliar se as terapias são eficazes.
Resta saber, porém, quando as empresas farmacêuticas decidirão que as provas são suficientemente convincentes para iniciarem uma pesquisa focalizada nos inibidores da reação de Maillard como terapia para as doenças cerebrais.
Notícia
Gazeta Mercantil