Um número cada vez maior de cientistas acha que experimentos em animais são caros, limitados e com resultados pouco confiáveis. Esse foi o assunto discutido em um workshop realizado em 1º de abril pela Unesp, com apoio da USP e da Fapesp, em São Paulo (SP), e que contou com pesquisadores e autoridades do Brasil e do exterior.
Intitulado “Progress on alternative in vitro methods for the safety assessment of chemicals and their impact on human health: international and Brazilian views”, o workshop é, segundo os organizadores, parte de uma ação da Fapesp para aproximar estudiosos do tema e evitar que o País fique para trás na corrida por novos modelos.
“É uma busca necessária inclusive para que respeitemos a atual legislação”, ressaltou a pró-reitora de Pesquisa da Unesp, Maria José Giannini, lembrando aos participantes que o Brasil passou por mudanças recentes nessa área. Em janeiro de 2014, o Estado de São Paulo proibiu os testes em animais para fins cosméticos, e em junho a restrição chegou a todo o País.
Experimentos desse tipo passam por questionamentos no mundo inteiro, em especial no caso do mercado cosmético. A União Europeia baniu os testes com animais para fins estéticos em 2013, incluindo também o comércio de produtos de beleza que tenham sido testados nessas cobaias. A lei é semelhante às existentes na Noruega, no Canadá e em Israel. Em 2014, a Índia, que já tinha legislação nesse sentido, determinou o fim da importação de bens de higiene e beleza desenvolvidos com experimentos desse tipo. Projetos de lei semelhantes tramitam nos EUA e na Austrália, aumentando ainda mais a pressão sobre países como Japão, China e Rússia, que ainda adotam a prática.
É TÓXICO
A toxicologia, que estuda os efeitos colaterais das substâncias sobre os organismos, é uma das áreas de pesquisa mais dependentes dos testes em cobaias, e tem sido também a origem das mais recentes buscas por alternativas. “Nos EUA, os cientistas estão preocupados principalmente com os erros de resultados obtidos com os atuais experimentos in vivo”, explicou Thomas Hartung, do Centro de Alternativas aos Testes em Animais do hospital da Johns Hopkins University. “Os pessimistas enfatizam que 90% das pesquisas em toxicologia dependem de modelos animais. Eu sou um dos otimistas que veem um mercado para os métodos alternativos que corresponde a 90% de tudo o que é feito nessa área”, afirmou.
Hartung aponta como um dos problemas a dificuldade em determinar o potencial cancerígeno de um composto. Isso porque, segundo ele, a predição de câncer entre espécies tem-se mostrado muito mais heterogênea do que os cientistas acreditavam décadas atrás. “O universo da toxicologia humana é muito maior do que esses testes reducionistas em animais podem alcançar”, advertiu.
Para Chantra Eskes, presidente da Sociedade Europeia de Toxicologia in Vitro (da sigla em inglês ESTIV), os testes em cobaias têm custo elevado e são difíceis de serem reproduzidos nas mesmas condições para revalidação dos resultados. “Estamos convivendo com um número extraordinário de falsos positivos e negativos para resultados de testes em coelhos com substâncias potencialmente irritantes, o que além de um desperdício de recursos é um risco para a população.”
RASGANDO DINHEIRO
Há entraves éticos evidentes para exposição de pessoas a elementos de toxicidade desconhecida, e uma das soluções seria usar mais o teste em células humanas cultivadas (aquelas que crescem artificialmente em uma lâmina laboratorial). Essa é a opinião de Raymond Tice, do National Institute of Environmental Health Sciences (NIEHS), que estáenvolvido com questões de saúde e de ambiente. “Precisamos de métodos que realmente predigam a reação de um composto quando ele for usado por humanos, e nesse sentido o modelo animal já se tornou pouco competitivo” explicou.
Tice destacou iniciativas como a criação de bancos de células-tronco e investigações sobre linhagens de patologias específicas. “A verdade é que os dados epidemiológicos de substâncias tóxicas em humanos estão pouco disponíveis”, disse, destacando o interesse do NIEHS em ampliar suas colaborações internacionais nesse campo.
Ele também criticou a obrigatoriedade dos testes em animais para liberação de novas drogas em diferentes partes do mundo. “De 5% a 12% dos fármacos que passam nos testes com cobaias não chegam ao mercado porque se mostram inviáveis para o uso humano”, disse. “É uma perda enorme de tempo e dinheiro.”
TESTE DOS TESTES
Após a fala do representante do órgão americano, duas iniciativas brasileiras foram debatidas no workshop: o Centro Brasileiro de Validação de Métodos Alternativos (BraCVAM) e a Rede Nacional de Métodos Alternativos (Renama). Criados, em 2012, os dois órgãos atuam conjuntamente. O BraCVAM recebe propostas de instituições de pesquisas e indústrias que tenham criado novos métodos e queiram submetê-los à aprovação no Brasil. A Renama realiza estudos que verificam a eficácia desses modelos e faz a recomendação para que sejam oficializados pelo Conselho Nacional de Controle de Experimentação Anima (Concea).
Já a Sociedade Brasileira de Métodos Alternativos à Experimentação Animal (SBMAlt) tem, por fim, o papel de difundir as práticas mais recentes aprovadas no País, inclusive oferecendo treinamento, como destacou o diretor-presidente da entidade, Jadir Nunes.
Luiz Henrique Mourão do Canto Pereira, coordenador-geral de Biotecnologia e Saúde do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), explicou que a Renama funciona por meio de laboratórios já existentes em instituições públicas e privadas, que validam a eficácia de métodos praticados fora do Brasil. Entre as alternativas que estão sendo validadas no país pela rede está uma conhecida pela sigla HET-CAM, que usa a membrana de ovo embrionado de galinha para determinar se uma substância tem potencial para irritar os olhos humanos.
“Ainda há áreas em que não é possível deixarmos de utilizar o suporte animal, mas já sabemos que ele não responde mais às nossas necessidades e está se tornando obsoleto”, opina Octávio Presgrave, coordenador da BraCVAM.
SENTINDO NA PELE
Segundo Canto Pereira, a Renama também tem investido em pesquisas para otimizar o uso de ferramentas computacionais que simulem o comportamento de moléculas candidatas a novos fármacos, além de promover o desenvolvimento de kits nacionais de pele humana reconstituída. “Sabemos que a importação desses kits é um entrave para a pesquisa brasileira, já que eles têm validade muito curta, o que é incompatível com os procedimentos burocráticos e sanitários próprios desse tema”, afirmou.
Ter acesso a esses kits é fundamental, por exemplo, para quem quer determinar se substâncias específicas são fototóxicas, ou seja, se causam dano à pele quando submetidas à luz. Esse é um desafio para Lorena Gaspar Cordeiro, da USP de Ribeirão Preto, que apresentou no workshop ensaios em que usa células humanas cultivadas para detectar agentes fototóxicos, com grande aplicação na indústria de cosméticos.
Vanessa Sá-Rocha é pesquisadora da Natura, empresa brasileira de produtos de beleza, onde procura técnicas que dispensem o uso de cobaias. Ela apresentou um estudo sobre compostos alergênicos que desenvolveu na Johns Hopkins University, onde estudou por meio do programa Ciência sem Fronteiras, do governo federal. “É muito crítico avaliar se um novo ingrediente causa reação em pessoas partindo do modelo animal, porque hoje já sabemos que a alergia apresenta muitavariação entre os seres humanos e até num mesmo indivíduo.”
OUTROS BICHOS
Juliana Campos Junqueira, do Instituto Ciência e Tecnologia da Unesp de São José dos Campos, usa modelos invertebrados para testes de toxicidade, como larvas de inseto e nemátodos. “O custo e a facilidade de replicar os resultados é uma das vantagens”, destacou. “Embora esses organismos não tenham a complexidade dos sistemas dos mamíferos, eles têm sistema imunológico e, por isso, servem de triagem para modelos vertebrados.”
Em parceria com a Embrapa e com a Universidade de Brown, nos EUA, Juliana desenvolveu um estudo no qual infectou larvas de Galleria mellonella, uma espécie de mariposa, com um fungo chamado Candida albicans, muito conhecido por causar infecções orais e genitais em humanos e que leva à candidose também em outras espécies de mamíferos de importância comercial. Ela tratou as larvas do inseto com outro microrganismo, o Lactobacillus acidophilus, obtendo resultados favoráveis. “Queremos agora saber se é possível usar esse lactobacilo para criar um método de prevenção à infecção por Candida”, anunciou.
Para Silvya Stuchi Maria-Enger, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, há testes em animais sendo realizados de maneira desnecessária devido a problemas de formação de mestrandos e doutorandos, que não sabem fazer uma revisão da literatura científica. “Muita coisa já foi produzida, cobaias já foram usadas e não é preciso refazer. Ao contrário, você pode usar os resultados obtidos por outros estudos para, a partir daí, dar prosseguimento à sua investigação. É assim que funciona a ciência, afinal.”
Silvya estuda a corrosão e a irritação na pele, com foco principalmente nos agrotóxicos. Segundo a professora, já há dezessete métodos alternativos para serem aplicados nessa área de pesquisa, incluindo o uso de microrganismos.
“Todos os modelos têm limitações e, provavelmente, não haverá um suporte que atenda a todas as necessidades de um estudo”, advertiu. Seguindo o mesmo raciocínio, Junqueira ressaltou: “A busca não deve ser por um protótipo perfeito, até porque o suporte animal também não é. Devemos adotar o método que responda de maneira mais adequada às características de cada investigação”.
As apresentações dos palestrantes podem ser acessadas no Portal Unesp, no endereço: <http://goo.gl/vGkhp4>.
Controle das pesquisas com animais na Unesp
Para Maria José Giannini, pró-reitora de Pesquisa da Unesp, a utilização de cobaias ainda é importante para a melhoria da saúde humana e de outros animais, mas a diminuição do seu uso é inevitável. “A demanda por validação de métodos alternativos já é uma realidade mundial, e os custos compensam os resultados”, diz Giannini.
Segundo a professora, a substituição já é necessária, por exemplo, para testar drogas mais modernas, como os medicamentos imunobiológicos, que atingem apenas moléculas específicas do organismo e que demandam até cinco vezes mais testes do que um remédio comum. Por isso a Unesp está colaborando para a criação do Centro para o Desenvolvimento e Validação de Métodos Alternativos (CeDeVAM). A utilização de animais na pesquisa e no ensino na Unesp é fiscalizada pelos comitês de ética em pesquisa de cada unidade (os chamados CEUA). Eles são compostos por professores treinados nas legislações nacional e internacional sobre o tema, além de veterinários, biólogos e membros de sociedades protetoras dos animais. “A estrutura essencial mínima para manter biotérios tem custos maiores dos que os testes realizados em escala laboratorial em nível celular, in vitro ou in silico”, reforça a professora Ana Marisa Fusco Almeida, presidente da Comissão do Biotério da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp em Araraquara. Uma das alternativas consideradas pela Prope – já realizada por instituições estrangeiras –, utiliza célulastronco para fazer crescer órgãos humanos integrados a microchips capazes de reproduzir o funcionamento de órgãos vivos, como o pulmão e o coração. Os custos de implantação de uma estrutura como essa podem ser compensados porque, segundo Ana Maria, o método permite produzir em grande escala resultados multiparamétricos (que dizem, em tempo real, a pulsação, a pressão sanguínea, a temperatura, etc.) com quantidade muito menor de produto a ser testado. “Mas todos os métodos precisam ser validados, e a substituição total dos animais ainda levará certo tempo”, adverte.