Centro de História da Ciência prepara dois volumes sobre os 70 anos da USP, o primeiro com depoimentos de dirigentes, outro sobre a relação da Universidade com a sociedade
Quando completou 20 anos, a Universidade de São Paulo ganhou um livro sobre a sua própria história, o do professor Ernesto de Souza Campos, com 580 páginas e rica documentação iconográfica. E ficou nisso por mais 50 anos. Não é que nada tenha sido escrito ou documentado para a posteridade nesse tempo todo; cada unidade, atualmente 36, deixou anotações sobre suas origens, evolução, ensino e pesquisa; professores de várias áreas escreveram ensaios sobre o papel da instituição no cenário nacional e suas lutas em favor das liberdades. Faltou, porém, alguém que, com engenho e arte, tempo e recursos, articulasse uma síntese do que havia nos anais e ensaios fragmentados e apresentasse por inteiro a face da Universidade, de 1934 a 2004. De preferência, uma história que, correta do ponto de vista acadêmico, também despertasse a atenção do público leigo, atraído por bons casos, contados em linguagem acessível e estilo leve. Se vai atingir esse duplo objetivo, é difícil prever, mas uma equipe do Centro Interunidades de História da Ciência, coordenada pelo professor Shozo Motoyama, promete lançar até o final do ano dois volumes, no total umas 700 páginas, contando a história da USP, primeiro do ponto de vista dos dirigentes, depois das relações da instituição com a sociedade.
Por que será que historiadores da própria Universidade, cujos trabalhos foram fundamentais para dar novos rumos à historiografia paulista e do País, não se animaram a escrever uma história interna? Motoyama, um astrofísico de formação e especialista em história da ciência e da tecnologia, arrisca algumas hipóteses: a USP caracteriza-se pela grandeza, na produção, na competência e no que representa socialmente; e grande também nas suas contradições, nos defeitos e principalmente na pluralidade sob todos os pontos de vista. Daí a dificuldade para os historiadores de qualificá-la, sem incorrer no risco da parcialidade ou da distorção. Outra razão desencorajardora seria o fato de cada pesquisador estar por demais ocupado com projetos acadêmicos próprios, faltando-lhe tempo para befletir sobre uma proposta de história da instituição que os acolhe.
Sucessos - Uma razão a mais para a equipe do professor Motoyama chamar a si a responsabilidade pelo empreendimento. Entusiasma o coordenador do projeto a constatação de que a USP tem uma história de sucessos e o segredo disso, que lhe garante atualidade permanente e a diferencia das outras universidades, pode ser encontrado já no decreto de fundação em 1934: a USP deveria promover pela pesquisa o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, característica que mantém inalterada, trazendo sempre à luz coisas novas e interessantes para o seu tempo.
Motoyama lembra que, no sexagésimo aniversário da Universidade, o Instituto de Estudos Avançados dedicou à data um número de sua revista e nele a professora Marilena Chauí defendia a conveniência de uma "terceira fundação da USP": a primeira teria sido em 1934, a segunda em 1968/69, com o fim do regime de cátedra e início da organização departamental, e a terceira representaria a desburocratização, argumentando que tudo aquilo que se pretendeu afastar na segunda fundação (a centralização do poder e a ditadura da burocracia) acabou se agravando em 1984. E o pior: as pessoas que lutavam por.uma reforma progressista agora concordavam com a universidade centralizada. A "terceira fundação" deveria garantir uma universidade mais integrada com a comunidade. Mas o coordenador do Centro Interunidades de História da Ciência discorda desse discurso. A pluralidade é característica da USP e grupos hegemônicos sempre existirão, sem, contudo, calar as vozes de correntes opostas. Atender às elites culturais e à população em geral é a missão da Universidade. Houve tempos em que alguns de seus integrantes se puseram a serviço da ditadura, ao mesmo tempo que outros, como o sociólogo Florestan Fernandes, se notabilizaram na oposição.
É certo que pelo menos o primeiro volume da história projetada por Motoyama, e provisoriamente intitulado USP 70 anos -imagens de uma história vivida, terá caráter oficial, trazendo fatos e pontos de vista expressos por reitores, vices e pró-reitores. As histórias orais serão publicadas na ordem cronológica e individualizadas. Já a segunda parte do projeto - Uma história para contar - USP 70 anos - pretende constituir uma narrativa mais livre, mais leve, para um público mais amplo, tendo por base a interação da Universidade com a sociedade. Os pesquisadores foram buscar histórias humanas de antigos alunos e professores, como a de um diretor de companhia de seguros, que na USP estudava Física e prometia largar tudo, o alto cargo e a empresa que lhe assegurava tranqüilidade financeira, assim que terminasse o curso, para dar aulas na rede pública do ensino fundamental. Poucos acreditavam que cumprisse a palavra, mas ele a cumpriu, abandonando tudo pela escola da periferia. Nesse ponto, seus colegas de curso perderam o contato com ele, que não pôde ser entrevistado para contar o resto da história. Outros episódios do segundo volume contarão o que a USP pode fazer para garantir o sucesso de uma empresa. Entre outros casos, recordará o de um empresário que, com ensinamentos adquiridos na Engenharia de Produção da Politécnica, conseguiu extraordinário sucesso com uma empresa no ramo de plásticos, em plena época de inflação descontrolada; outro aluno da mesma unidade especializou-se em computação e atualmente detém alto cargo numa instituição bancária. Há também histórias de gente que conseguiu destaque em outros campos, como políticas públicas, educação e montagem de cursos em outras universidades. É conhecida, por exemplo, a atuação de professores da USP na Unicamp e na USP, a começar pela fundação da Universidade de Campinas pelo professor Zeferino Vaz. Os professores Antonio Cândido e Fernando Novaes estruturaram os cursos de Letras e de História, respectivamente, naquela instituição.
A equipe de pesquisa e redação dos dois volumes de história da USP busca informações em três fontes principais: história oral, que inclui memórias de diretores das 36 unidades; livros e revistasse arquivos encontrados em unidades como Filosofia, Politécnica e Reitoria. O coordenador está seguro que não faltarão recursos para a publicação da obra, graças ao apoio institucional de empresas privadas e estatais; o problema são os prazos, mesmo assim a publicação está garantida este ano. A maior parte dos pesquisadores contratados - Fernando Camelier (História), Marilda Nagamini (História), Ana Maria Gordon (Física/Ipen), Renato Vargas (Poli), Edson Emanuel Simões (Geografia) e Pedro Luna Filho (jornalista) - trabalha em tempo integral e espera começar a fase de produção dos volumes a partir de agosto.
História da ciência - Shozo Motoyama dedica-se há muitos anos à pesquisa da história da ciência e da tecnologia. Agora mesmo, está para sair pela Edusp, com apoio da Fapesp, uma obra que ele coordenou, intitulada Prelúdio para uma história: ciência e tecnologia. Na década de 70, foi assistente do físico Mário Schen-berg, personalidade visada pelos governos militares, com atuação na ciência, na política e na crítica de arte. Depois, Motoyama mudou de área, ao perceber que era necessário superar o mito de que brasileiro não sabe fazer ciência. Segundo o professor, existem registros de inúmeras pesquisas interessantes nessa área feitas em vários Estados, inclusive Alagoas, Sergipe e outras unidades do Nordeste, que não foram concluídas por falta de apoio financeiro. "Precisamos valorizar e preservar o que existe. Quando não registradas, 95% das pesquisas se perdem", disse. Os preconceitos, segundo ele, se estendem também ao trabalho dos historiadores de ciência e tecnologia, o que não o impediu de ousar mais com o projeto de história da USP. Além de pesquisador, Motoyama também dá aulas sobre a sua especialidade no Departamento de História; na Escola de Comunicações e Artes e no Instituto de Química. Em novembro, o Centro de História da Ciência promove no campus um congresso para discutir aspectos relacionados com a Universidade.
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Jornal da USP