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Gazeta Mercantil

Nascimento de uma Nação (1 notícias)

Publicado em 03 de dezembro de 2004

Por ADELTO GONÇALVES - de São Paulo
O complexo processo de formação do Estado nacional brasileiro é analisado no livro "Brasil: Formação do Estado e da Nação", lançado pela Editora Hucitec, de São Paulo, em parceria com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e com a Editora Unijuí, do Rio Grande do Sul. O livro reúne 26 ensaios apresentados em setembro de 2001 na Universidade de São Paulo (USP) no seminário "Brasil: a Formação do Estado e de Nação (1780-1850)". Na apresentação, o professor Istvan Jancsó, da USP, organizador do seminário e da edição, destaca a dificuldade que foi criar uma Nação na América, já que não existiam à época da separação do Brasil de Portugal "nem burguesias em busca de hegemonia no interior de formações sociais identificadas com as nações prefigurando mercados nacionais nem nobrezas ameaçadas em suas liberdades tradicionais". O professor Geraldo Mártires Coelho, da Universidade Federal, do Pará, lembra em "Onde fica a Corte do senhor Imperador?", que, em 1822, a balança comercial entre o Grão-Pará e Portugal era favorável às exportações paraenses, explicando que seria muito mais interessante para a província manter os vínculos com Lisboa. Até porque, em termos geográficos, a posição do Grão-Pará relativamente às correntes marítimas tornava as viagens para Lisboa regulares e mais rápidas do que para o Rio de Janeiro, o que, politicamente observado, acentuava o isolamento da província em relação ao governo de D. Pedro. As relações entre Portugal, especialmente a Região Norte, e o Pará sempre foram mais intensas do que entre o Pará e o Rio de Janeiro. E assim permaneceram por muito tempo, mesmo depois da separação. (Lembro-me que, certa vez, ao pesquisar no Arquivo Geral da Universidade de Coimbra, deparei-me com o jornal "O Progresso", de Paços de Ferreira, de 7/3/1909, no qual constatei que meu avô paterno Joaquim Coelho Gonçalves, do lugar de Peias, abria uma subscrição em favor de um amigo que da freguesia de Carvalhosa mudara para o Pará e lá morrera). O historiador paraense lembra que, além das relações comercias e afetivas entre as duas regiões, havia a questão política: desde 1821, quando o paraense Filipe Patroni trouxera de Portugal as novas do constitucionalismo vintista, depois de estudar em Coimbra, um confronto aberto instalou-se entre aqueles que estavam sob a influência das Luzes e os representantes das formas antigas de poder oriundos dos quadros da velha capitania. Patroni lançou o jornal "O Paraense" em maio de 1822 e, ao final daquele ano, quando chegou ao Grão-Pará a notícia da separação, a estratégia política seguida pelas lideranças locais era em torno de um apoio ao Reino Unido, com a esperança de que as Cortes de Lisboa delegassem o poder a alguém ilustrado que combatesse o despotismo e a tirania que vinham do absolutismo monárquico. Como se sabe, nada disso deu certo porque a separação no Brasil representou o último vagido do absolutismo monárquico, a maneira que os áulicos do regime ditatorial encontraram para garantir sua permanência no poder, José Bonifácio à frente, embora curiosamente fosse um pensador iluminista. Dessa maneira, a incorporação do Grão-Pará ao Império nascente veio de cima para baixo. Em agosto de 1823, uma junta de governo, pressionada por um emissário do almirante Cochrane, que já havia sido responsável pelo curvar-se do Maranhão ao governo central do Rio de Janeiro, entregou os pontos ao novo imperador. Inaugurava-se assim uma conhecida prática que vem sendo observada desde então pelas elites brasileiras: mudar de vez em quando para que tudo continue na mesma. De fato, a estrutura do poder no Grão-Pará pouco mudaria porque, como observa Mártires Coelho, seria garantida a preservação das antigas estruturas de dominação colonial, o aparelho militar permaneceria nas mãos da oficialidade lusitana e os senhores do colonialismo continuariam a ocupar os espaços do poder. Portugal, com D. João reinando, mas sem mandar, em meio ao tumulto das mudanças políticas e egresso de uma época de desorganização do Estado, ainda que quisesse, pouco poderia fazer para tentar impedir que o recém-fundado Estado brasileiro consumasse o seu ordenamento político-militar. Nem se pode imaginar que lutaria contra o próprio filho, não fosse a construção de uma nação na América uma estratégia política de sobrevivência da Casa de Bragança, imaginada e articulada pelo seu mais talentoso ministro, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, o conde de Linhares. Em outro ensaio, a professora íris Kantor, da Universidade de São Paulo, reconstitui as desventuras que sofreu o conselheiro ultramarino e desembargador José Mascarenhas Pacheco Pereira-Coelho que, em 1758, fora para a Bahia como enviado especial do ministro José Sebastião de Carvalho e Melo para expulsar os jesuítas, depois de ter participado como escrivão da devassa aberta para apurar os desmandos da chamada Revolta dos Borrachos ocorrida no Porto no ano anterior. Ao que parece sem o aval do secretário do rei, o conselheiro ultramarino tomou a iniciativa de reunir as elites baianas para fundar uma academia de História. Essa instituição de breve vida, a Academia Brasílica dos Renascidos, viria a ter entre os seus sócios correspondentes, o poeta mineiro Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), que a essa época já havia retornado de Coimbra, onde tivera como colega na Faculdade de Cânones José Luís Soares de Barbosa, que seria pai do poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805). Quem também andava na Bahia a essa época era o desembargador João Bernardo Gonzaga, intendente do ouro, que, embora apreciasse as "letras amenas", não foi convidado a participar da Academia ou, se o foi, prudentemente, manteve-se a distância. O desembargador era pai do futuro poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), que, rapaz de 14 anos, lá estava em sua companhia. Ao se constatar isso, a sensação que se tem é que àquela época o mundo luso era extremamente pequeno, quase uma aldeia, embora estivesse espalhado pelos quatro cantos do planeta. Em seu trabalho, íris Kantor procura levantar as motivações subjacentes à decisão de Mascarenhas de criar a Academia e, em seguida, à decisão pombalina de fechá-la e mandar prender seu idealizador. Aos 38 anos, Mascarenhas, cujo pai era baiano e fora responsável pela devassa da Revolta dos Borrachos, era um homem afinado com as elites locais. Dos estatutos da Academia, como observa a historiadora, havia a percepção entre ser "português americano" e "ser português europeu", embora os acadêmicos deixassem claro o seu desejo de "servir à Pátria". Os membros da Academia pretendiam escrever uma "história universal de toda a nossa América portuguesa" para que fosse possível perpetuar a memória dos vassalos mais beneméritos naqueles 250 anos de colonização. Quando Mascarenhas convidou o capitão-tenente da Armada Real Francesa ancorada no porto da Bahia para participar da Academia, o vice-rei D. Marcos de Noronha enviou correspondência ao Conselho Ultramarino criticando a "estreita amizade" entre os dois. Também acusava Mascarenhas de colaboracionismo naquela pesada conjuntura da Guerra dos Sete Anos (1756-1763) em que Portugal tinha permanecido aliado da Inglaterra, contra a França e a Espanha. O desfecho da historia do conselheiro é sobejamente conhecido: cinco meses depois da fundação da Academia, Pombal mandaria que Mascarenhas fosse "sepultado em vida" no presídio da Ilha de Santa Catarina. Especula-se que Mascarenhas, além da tentativa de parceria com franceses aportados na Bahia, ainda procurara uma conciliação com os jesuítas ou fora demasiado brando com os religiosos. Outro ensaio imperdível é o de professora Iara Lis Schiavinatto, da Universidade Estadual de Campinas, "Imagens do Brasil: entre a natureza e a História" em que a autora, que já nos dera o livro "Pátria Coroada: o Brasil como corpo político autônomo - 1780-1831" (São Paulo, Edunesp, 1999), discute as chamadas viagens filosóficas do século XVIII, que mais eram empreendimentos do Estado português para apreender e entender o vasto território brasileiro, suas gentes, fauna e flora. Destas e das demais reflexões reunidas por Istvan Jancsó, o que se infere é que o marquês de Pombal, apesar das acusações sempre procedentes sobre a origem ilícita de sua fortuna, foi mesmo um estadista à frente de seu tempo, pelo menos em sua intenção de integrar no Estado português na América seus bárbaros habitantes internos (os pobres e escravos) ou externos (os índios). Não teve êxito a princípio porque o Estado português só conseguiu incorporar pequenas parcelas da população proprietária, os grandes traficantes de escravos e os donos de terras, além de uma camada menos rica que se aninhou na estrutura jurídica e no funcionalismo régio. Mas, a rigor, até hoje o Estado brasileiro tem fracassado em sua - missão de incluir grandes camadas da população no mercado, sem lhes permitir que conheçam e tenham direitos civis. Os marginalizados do Estado, cujo número tem dramaticamente crescido nos últimos anos nas grandes cidades, são o grande desafio do Brasil no século XXI. *Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, autor de Gonzaga, um poeta do lluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2003) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: