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Na Pinacoteca, pesquisas da USP unem arte e ciência (1 notícias)

Publicado em 06 de fevereiro de 2025

A restauração de obras de arte passa por etapas e processos que as pessoas nem imaginam.

Antes mesmo que o restaurador pense em retocar partes desbotadas ou degradadas, é feito um estudo que vai muito além da arte e do desenho e se expande em direção à física e à química. É esse trabalho que o Laboratório de Arqueometria e Ciências Aplicadas ao Patrimônio Cultural do Instituto de Física da USP pretende divulgar ao público na Pinacoteca de São Paulo.

Até o próximo dia 13, uma equipe de pesquisadores do laboratório, liderada pela professora Márcia Rizzutto, trabalha ativamente com o uso de instrumentos científicos portáteis para analisar obras de arte e identificar onde houve intervenções anteriores e quais são os materiais presentes na obra, além de outras características que podem auxiliar os restauradores no trabalho de conservação. As análises são feitas sem que seja necessária a coleta de amostras e têm, como novidade, o fato de, neste ano, serem abertas ao público.

No detalhe

Três obras estão passando pelo processo de análise do laboratório na Pinacoteca desde o dia 21 de janeiro passado: América (Stephan Kessler, 1650-1700), África (Stephan Kessler, 1650-1700) e A Hora do Prazer (Virgílio Maurício, 1914). Para fazer uma documentação precisa e detalhada que vai servir para os restauradores do museu, os pesquisadores expõem os quadros a diferentes tipos de técnicas, entre elas as conhecidas como fluorescência de Raio X e a espectroscopia Raman.

A fluorescência em raio X é feita de forma que o sistema de radiografia fica fixo atrás da obra, enquanto o tubo fica na frente. Por meio da radiografia, os pesquisadores obtêm um gráfico com os raios X característicos distintos, o que permite a eles detectarem quais são os elementos químicos presentes nela, como explica a professora Márcia Rizzutto: “Independentemente da oxidação do verniz aplicado a essa obra, se tem um branco de chumbo, um vermelho de mercúrio ou um azul de cobre, eles têm raios X característicos diferentes. Isso permite que façamos a identificação e a diferenciação, mesmo que a olho nu não seja possível”.

Se o raio X permite que se identifique o elemento químico, a espectroscopia de Raman propicia, também, a detecção do composto químico presente em determinado ponto da obra, por meio da vibração de moléculas, que aparecem em um gráfico. “Por exemplo: mercúrio com enxofre. Na fluorescência em raio X, eu sei que tem mercúrio, mas não consigo afirmar se também tem enxofre”, conta a professora. A detecção se dá por meio da incidência de um laser verde ou vermelho em direção à tela. “Na diferença entre o que foi e o que voltou é onde eu vejo a vibração que ele conseguiu fazer”, completa. Uma limitação dessa técnica é que o laser tem muita dificuldade em atravessar o verniz da tela, que é espesso e impede a captação total de sinal. Após a análise, já no restauro, a camada de verniz será retirada, facilitando o processo antes de ser colocado um novo verniz.

Outro diferencial do Raman é que ele elimina, na maior parte dos casos, a necessidade de coletar amostras da tela para fazer análises. “ Eu poderia só pegar uma amostrinha e um microscópio e olhar as camadas. Mas a ideia é não ter que coletar as amostras e, por meio dessa análise, entender as camadas. Até porque nunca iriam me deixar coletar os 54 pontos que identificamos em África graças ao Raman. Já estamos dando 54 informações sem termos que coletar nada”, acrescenta a professora A partir desse processo é feito o cálculo da área dos picos do gráfico gerado. “Aí correlacionamos as áreas para tentar decifrar em qual camada está o pigmento, se foi usado como mistura, se é o pigmento principal… É um trabalho matemático e analítico”, completa.

Além da fluorescência em Raio X e do Raman, um procedimento relevante na ligação entre as atividades realizadas pelos pesquisadores da USP e o trabalho dos restauradores é a irradiação com luz ultravioleta. O diferencial dessa técnica é a possibilidade de ver, pela imagem, onde já houve intervenções anteriores. “P ara nós, é muito importante saber que tal pigmento não é o original e que em outro lugar da obra tem o pigmento original”, explica Rizzutto. A professora cita o exemplo do titânio, pigmento que passou a ser produzido somente depois da composição das obras, o que caracteriza uma intervenção posterior. Mas ela alerta que há mais variáveis a serem consideradas: “Se fosse um artista que produzia suas tintas, ele poderia ter acesso ao mineral titânio e produzir o pigmento mesmo naquela época, diz a professora, referindo-se à obra África , do século 17.

A equipe do Instituto de Física também usa a reflectografia de infravermelho, outra técnica útil para a restauração de obras de arte. O objetivo dessa técnica é ver os desenhos “escondidos” por trás da obra final, o que permite que os pesquisadores e restauradores entendam mais sobre o processo de produção de uma obra. “Com isso, eu consigo ver o desenho de baixo. Se o artista desenhou o rosto, se usou lápis… Consigo ver as manchas, mas também os rascunhos e os desenhos. Percebo, por exemplo, se o artista tem a mão mais livre para fazer personagens, mas precisa rascunhar mais para fazer formas geométricas”, explica Rizzutto. A reflectografia de infravermelho funciona a partir do posicionamento de lâmpadas halógenas — um tipo de lâmpada incandescente —, que emitem um pouco do comprimento do infravermelho. O infravermelho é emitido, refletido e, por fim, captado por uma câmara de infravermelho. A professora ainda enfatiza que, mais do que o fator histórico e as peculiaridades de cada artista, esse procedimento pode ser um ótimo auxílio para os restauradores: “A reflectografia de infravermelho aponta, também, para fragilidades da obra, como quebras e rasgos. Para o conservador e para o restaurador, essas informações são muito importantes, ainda mais diante da remoção desse verniz oxidado”.

Parceria longeva

A professora conta que o projeto de análise de obras de arte pelo Instituto de Física da USP já tem mais de 20 anos. “Fizemos um primeiro trabalho com o Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP. O MAE tinha um problema de um material de corrosão em umas peças metálicas e queriam entender isso. E nós temos, na física, um acelerador de partículas que analisa materiais. Então levamos as peças do MAE para o Instituto de Física, para analisar”, lembra Rizzutto. A partir dali, o laboratório, que fica na Cidade Universitária, passou a procurar parceiros que pudessem se interessar por esse tipo de trabalho. “A Pinacoteca topou. Começamos a levar obras da Pinacoteca para o laboratório, para serem analisadas lá. Só que não conseguíamos levar obras muito importantes.”

Com base em exemplos de fora do Brasil, com destaque para museus da Itália e da França, o objetivo passou a ser o de replicar a tecnologia do laboratório, mas por meio de uma instrumentação portátil — o que aumentou a abrangência de obras, seja em importância, seja em tamanho. “A análise das três obras que estão sendo estudadas agora já era uma proposta antiga, mas elas são de grandes dimensões. Seria difícil levá-las ao laboratório. Por isso, fazemos o trabalho no espaço expositivo, utilizando luz escura e movimentando a obra por meio desse sistema”, explica.

Além da professora Márcia Rizzutto, compõem o grupo de análises duas doutorandas do Instituto de Física e um orientando da professora em iniciação científica, acompanhados por um restaurador do museu. Há, ainda, um outro pesquisador do grupo, especializado em fósseis, Gabriel Osés. “As doutorandas são mais ativas, enquanto o aluno de iniciação científica as acompanha e conversa com o público”, conta Rizzutto.

A expectativa da professora é que o projeto continue. Ela revela que já há obras aguardando para serem analisadas. “Uma obra que vamos analisar pertence ao Museu Paulista e está em comodato aqui na Pinacoteca. Mas, como vai ser preciso o uso intenso de instrumentação e equipamentos, vamos tentar fazer esse trabalho em períodos que em que tenhamos outras demandas, também.” Ela admite ainda que foi aprovado pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) um projeto para a construção de um Centro de Pesquisa de Ciência de Patrimônio no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, por meio de uma parceria com os historiadores do museu. “A ideia é a mesma: ter esse tipo de análise nas salas de exposição para mostrar ao público as pesquisas que são feitas nessa área, replicando o laboratório que temos no Instituto de Física, mas de forma fixa”. Para que o projeto se tornasse possível, a professora passou a lecionar também no MAC.

Márcia Rizzutto se diz muito satisfeita com a recepção do público que desde o mês passado acompanha o trabalho dos pesquisadores da USP na Pinacoteca. “Poucas pessoas conhecem esse trabalho que fazemos há tanto tempo. Por isso é muito importante, para nós, divulgar esse trabalho. Nós demonstramos que a física pode ajudar muito a arte.”

O trabalho de análise de obras de arte do Laboratório de Arqueometria e Ciências Aplicadas ao Patrimônio Cultural do Instituto de Física da USP acontece até 13 de fevereiro, de segunda a sexta-feira, das 9hs. às 17hs., na Pinacoteca de São Paulo, que fica aberta ao público de quarta-feira a segunda-feira, das 10hs. às 18hs., e está localizada na Praça da Luz, 2, centro, em São Paulo. Entrada paga. Mais informações no site do laboratório e no site da Pinacoteca

*Estagiário sob supervisão de Roberto C. G. Castro

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

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