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Jornal Brasil

Na gênese da OAB (1 notícias)

Publicado em 09 de novembro de 2013

Prosopografia é um recurso utilizado pelos cientistas sociais para a elaboração de uma biografia coletiva: delimitado um grupo de indivíduos com certas características comuns, são estabelecidas variáveis e levantados dados biográficos para identificar padrões e rupturas no interior desse grupo. Foi assim que Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos pôde observar dados de continuidade entre os bacharéis de elite do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), fundado ainda no Império (1843), e da cúpula da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), criada imediatamente após a Revolução de 30, que pôs fim à República Velha.

Em sua pesquisa de pós-doutorado, o autor analisa o papel desempenhado pela OAB desde sua fase inicial como órgão paraestatal, até o fim do Estado Novo, já como centro de oposição ao governo e atribuindo para si o papel de defensor da ordem jurídica. O estudo foi desdobrado em quatro eixos de análise: a cúpula dirigente da entidade, instalada no seu Conselho Federal; as relações da cúpula com a categoria dos advogados; o perfil institucional do órgão; e as relações estabelecidas com o Estado. "A atuação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no primeiro Governo Vargas, 1930-1945" é o título da pesquisa apresentada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).

"A OAB é filha da Revolução de 30, embora fosse idealizada desde meados do século 19, quando uma elite de juristas fundou o IAB, já tendo entre seus objetivos a criação de um órgão inspirado na Ordem dos Advogados de Paris", explica Marco Aurélio Vannucchi. "A diferença entre as duas entidades é que o IAB sempre esteve desvinculado do Estado. Ainda que prestasse assessoria jurídica ao governo central do Império, acerca de leis e propostas legislativas, não tinha a força de um órgão corporativo capaz de controlar a atuação profissional dos advogados. A OAB foi instituída através de decreto baixado em novembro de 1930 pelo Governo Provisório de Vargas."

Ficou claro para o pesquisador que, para entender a atuação da OAB ao longo dos 15 anos do primeiro governo Vargas, precisaria analisar também o papel do IAB, visto que as duas entidades tinham uma ligação umbilical. "Factualmente, sabe-se que juristas ligados ao Instituto levaram a proposta de criação da Ordem até Vargas e Oswaldo Aranha (então ministro da Justiça), e que ambos teriam resistido à ideia, alegando que não queriam instituir qualquer tipo de controle sobre o mercado profissional. Mas acabaram concordando, incluindo o artigo em um decreto visando à reorganização da Justiça no Distrito Federal."

Continuidade

Segundo Vannucchi, apesar do decreto, era necessário instalar a OAB concretamente - eleger a diretoria, elaborar o regulamento, providenciar as sedes -, empreitada que o governo delegou justamente ao IAB. "Na prática, era o mesmo grupo de elite de advogados, relativamente pequeno, que ocupava os cargos de direção tanto de uma entidade como da outra, ao mesmo tempo ou de maneira alternada. Um primeiro dado compartilhado pelos bacharéis é que embora já existisse mais de uma dezena de faculdades de direito no país, eles tinham se diplomado predominantemente em instituições do Rio de Janeiro, o que indicava concentração de origem."

Um segundo ponto realçado pelo autor da pesquisa é que pelo menos a metade desses bacharéis também era de homens públicos, ocupando cargos eletivos ou cargos de confiança centrais como de ministros e secretários de Estado. "Isso confirmava o traço de continuidade em relação à elite do Império, que sempre teve um pé no parlamento e outro no escritório de advocacia. O primeiro presidente da Ordem, Levi Carneiro, foi consultor-geral da República de 1930 a 34. E, dentre os 27 bacharéis que compunham o Conselho Federal, 18 eram parlamentares."

Ainda sobre o perfil desses dirigentes, a maioria provinha de oligarquias regionais ou de famílias com tradição nas carreiras jurídicas. O pesquisador cita o exemplo de Raul Fernandes, presidente da OAB de 1944 a 48, que por cinco décadas advogou para a família Guinle, além de ter sido diretor da Pirelli. "Outra característica é a vida acadêmica e intelectual intensa, como professores e até catedráticos de faculdades de direito prestigiadas, ao passo que alguns eram membros de academias estaduais e um ou outro da Academia Brasileira de Letras. Um único indivíduo, portanto, podia pertencer à elite jurídica, política, econômica e intelectual."

Quanto a outro eixo de análise da pesquisa, Vannucchi afirma que a representatividade da OAB junto ao conjunto dos advogados era apenas pretendida, e não de fato. "Essa elite de bacharéis estava muito distante da categoria, vendo-se como uma força de vanguarda que deveria liderar e estabelecer regras rígidas para que todos se tornassem profissionais respeitáveis. O Conselho Federal servia como uma instância iluminista, que apenas mostrava o caminho a ser seguido, sem o menor interesse em estabelecer um canal de diálogo amplo e frequente. A atual representatividade de classe da OAB vem de um movimento iniciado apenas na década de 70, num esforço real para se estabelecer o debate."

Oposicionismo

Uma das indagações colocadas pelo autor na pesquisa é por que os notáveis bacharéis adeptos do liberalismo, que apoiaram a ascensão de Vargas ao poder e passaram a exercer funções públicas, decidiram pela oposição ao Estado Novo, regime político que o presidente impôs a partir de 1937. "Por conta de lutas intestinas, muitos deles acabaram afastados dos postos no governo e se antagonizaram com Vargas, assumindo como meta derrubar o regime. Esses expurgados, por outro lado, se refugiaram na iniciativa privada, recebendo amparo financeiro e político de grandes grupos econômicos, atuando como consultores, dirigentes e mesmo proprietários dessas empresas."

De acordo com o pesquisador, a partir de 1944 e mais claramente em 45, o governo Vargas perdeu o apoio dos setores de elite e procurou se aproximar das classes populares, principalmente dos trabalhadores urbanos. "A aproximação alarmou os grupos econômicos e a atuação política dos juristas reverberou essa preocupação, estando aí uma fonte econômica do oposicionismo dos bacharéis. No fundo, eles temiam pela ordem social da qual individualmente se beneficiavam e, também, pelos grupos econômicos aos quais serviam profissionalmente."

No mesmo ano de 45 surgiu a UDN (União Democrática Nacional) e Vannucchi vê o embarque dos bacharéis na sigla como um movimento natural. "Até o início de 45, os partidos políticos continuavam proibidos, mas já em 43 era lançado o "Manifesto dos Mineiros", que é, por assim dizer, a certidão de nascimento da oposição liberal ao Estado Novo. Na falta de partidos, os liberais se reorganizaram criando órgãos civis para alimentar o oposicionismo, e também procuraram colonizar os órgãos existentes, sobretudo os de grande prestígio como a OAB e o IAB, que serviram de trincheira na luta contra Vargas."

É no biênio 44-45, ressalta o autor do estudo, que a Ordem dos Advogados, vindo de uma conquista progressiva de prestígio junto à sociedade em geral, deixa definitivamente a atuação exclusivamente corporativa para se colocar no cenário nacional como um órgão defensor de um bem comum, que é a ordem jurídica. "Seus dirigentes passam a fazer pronunciamentos públicos, conceder entrevistas a veículos da imprensa e organizar manifestações e abaixo-assinados, permitindo pela primeira vez que a OAB ocupasse um espaço destacado no seio da sociedade civil."

Reflorescimento

Na opinião do pós-doutorado, estudar a trajetória da OAB foi importante para entender a evolução da sociedade civil ao longo da primeira metade do século 20 - ela viveu um período de florescimento até meados da década de 1930. " Nas primeiras décadas do século, a sociedade brasileira cresceu e se tornou mais autônoma em relação ao Estado, mais diversa do ponto de vista ideológico e também em termos de representação. O Estado Novo representou uma ruptura nesse processo. Ao fim da ditadura estadonovista, a sociedade ganhou outro respiro, com o fim da censura à imprensa, o surgimento de novos órgãos de classe e a organização, pela primeira vez no país, de um sistema partidário de âmbito nacional. E a OAB foi representativa dessa segunda onda de florescimento."

Uma última observação de Marco Aurélio Vannucchi vai contra a tese de que a reorganização do Estado em termos corporativos, a partir de 1930, diz respeito somente aos operários. "Vargas levou adiante uma organização do tipo corporativo também para profissões de classe média, sendo que os principais conselhos profissionais, existentes até hoje, nasceram naquele governo. E o primeiro conselho foi justamente da OAB, que surgiu como órgão corporativo, mas foi se autonomizando em relação ao Estado para se tornar cada vez mais um órgão da sociedade civil. Embora continue, grosso modo, com as mesmas incumbências corporativas que tinha em 1930, hoje ninguém pensa na OAB como um órgão paraestatal."

Livro detalha "interregno democrático"

"Os cruzados da ordem jurídica" é o livro de Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos que está sendo lançado pela Alameda Editorial, fruto da tese de doutorado defendida pelo autor na USP. Nesse trabalho, Vannucchi analisou a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de 1945 a 1964. "O foco do livro está no chamado "interregno democrático" entre o fim do Estado Novo e o início da ditadura militar. Quis entender como a sociedade civil tinha se comportado e atuado nesse período, que foi da primeira experiência democrática na vida brasileira. Como já temos muitos trabalhos relacionados a sindicatos operários e partidos políticos, optei pela OAB, que naquela época já tinha projeção entre as entidades civis."

Atualmente, Marco Aurélio Vannucchi é professor adjunto do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Ele foi um dos coordenadores do projeto "Mapeamento e sistematização do Acervo Dops/SP", financiado pela USP e Fapesp. É autor de artigos e livros na área de história política do Brasil República e, nos últimos anos, tem se dedicado a estudar a elite jurídico-política brasileira no pós-1930.

Fonte: Jornal da Unicamp