Notícia

Revista Concerto

Musicologia de confluência

Publicado em 01 janeiro 2012

Por Por Leonardo Martinelli

Vários são os personagens que habitam o cotidiano dos frequentadores das salas de concertos, dos teatros de ópera e - por que não? - da seção de clássicos de uma loja de discos, tais como maestros de casaca, cantoras de vestido de noite ou grandes solistas de olhar sedutor. Essa é apenas a faceta mais visível de um mundo em que há muitas outras atividades que envolvem profissionais de diferentes naturezas. Entre esses, nas últimas décadas, o musicólogo tem ganhado papel cada vez mais proeminente. A musicologia diz respeito a uma ampla gama de atividades, abrangendo desde a pesquisa junto a documentos e partituras antigas até a reflexão de cunho filosófico sobre a música.

A partir da década de 1950, desenvolveu-se no Brasil um trabalho musicológico que focava a produção local, na época bastante esquecida do grande público - como de certa maneira permanece até hoje - e inacessível aos próprios músicos. Vários pesquisadores passaram a atuar e a revelar verdadeiros tesouros perdidos de nossa cultura musical. Da geração mais recente de musicólogos, destaca-se o trabalho de Paulo Castagna. Aos 52 anos, o professor do Instituto de Artes da Unesp (Universidade Estadual Paulista), Castagna é responsável pela coordenação de dois grandes trabalhos de catalogação, reorganização e edição de partituras: o Acervo da Música Brasileira e o Patrimônio Arquivístico Musical Mineiro. O empenho revelou dezenas de partituras e gravações, muitas das quais - não fossem essas iniciativas - poderiam estar definitivamente perdidas. Porém, Castagna não limita sua atuação ao campo da musicologia histórica; hoje ele se dedica também a um novo projeto no qual enfatiza - não sem causar certa polêmica no meio - a necessidade do desenvolvimento humano nas práticas musicais e acadêmicas.

Quais são os principais desafios da pesquisa musicológica histórica no país?

Hoje em dia, algumas coisas mudaram para melhor e, desde que se esteja no mundo acadêmico, não há, em geral, dificuldades financeiras para se realizar uma pesquisa na área. Isso é algo bem diferente da época em que comecei minhas atividades como pesquisador, na década de 1980, quando acredito ter sido um dos primeiros músicos a requerer bolsas para instituições como o CNPq e a Fapesp. Entretanto, a questão do acesso às fontes e aos materiais, como partituras e documentos, continua sendo um grande problema.

Isso ocorre porque, por um lado, persiste no Brasil o hábito de entender a produção artística como bem privado. Isso não é específico na música, ocorre também em outras áreas. Essa visão privada existe mesmo nos acervos públicos, mantidos pelos Estados, nos quais muitas vezes não há restrição regimental, mas os funcionários criam propositalmente uma série de dificuldades de acesso ao acervo. Já vivi situações como viajar centenas de quilômetros e ser impedido de trabalhar numa instituição, sem que me dessem qualquer justificativa plausível. Por outro lado, essas restrições ocorrem porque o musicólogo ainda é visto como invasor, perigo, e há uma razão para isso. De fato, os primeiros musicólogos foram saqueadores. Entre as décadas de 1950 e 1970, fazia parte da cultura desses pioneiros tomar para si o material que encontravam. Na concepção da época, eles se julgavam no topo de uma hierarquia intelectual que dava a eles o direito de se apropriar do material. Muitas vezes, isso era feito de forma legal, comprando o material de supostos proprietários - o que não diminui a gravidade do desmembramento de acervos de interesse público em prol de uma cultura cólecionista, tal como é o caso notório de Francisco Curt Lange. Podemos encontrar atitude semelhante nos arqueólogos europeus que saquearam monumentos gregos e egípcios no século XIX em benefício de coleções particulares ou de museus de seus países. O problema fica ainda maior quando se consolidam grupos de musicólogos concorrentes, que disputam a posse do material, e seu acesso vira arma nessa batalha, fazendo que a musicologia histórica perca a finalidade principal, que é a de levar a público informações antes ocultas.

Quando falamos de repertório musical antigo brasileiro, é natural que façamos comparações com o que ocorria naquele mesmo momento na Europa. Isso é pertinente, ou mesmo possível?

Essa questão traz à tona outra dificuldade da musicologia brasileira, que é o fato dela ter chegado ao Brasil com muita precariedade teórica. A briga pelo acesso às fontes foi (e é) tão grande que a atividade ficou muito centrada em obtenção de fontes e na edição de obras, e desenvolveu-se muito pouco o pensamento teórico. Para que serve a musicologia? Quais são suas ferramentas? Quais são as possibilidades que o musicólogo tem? Discutimos pouco perguntas como essas, e é por isso que hoje em dia ainda se perpetuam expressões sem sentido como "barroco mineiro" ou "música colonial". Isso são derivações de uma limitação teórica em se considerar tudo pelo lado europeu, que é visto como o centro do Universo.

Mas esse pensamento eurocêntrico não é até certo ponto natural, uma vez que fomos colonizados por eles?

Fomos colonizados por europeus, com técnicas asiáticas, a partir da imposição de um deus hebraico, que deixou uma herança importante, mas que muito cedo começa a se misturar com culturas indígenas e africanas. Tudo isso dissolveu completamente o desejo de construir, na América, uma cultura europeia. Trata-se de uma cultura de confluência, e ver exclusivamente o lado europeu é um erro que advém dessa limitação teórica. Afinal, por que na chamada música colonial a música indígena e a africana ocupam lugar subalterno? A visão eurocêntrica concentra-se em mestres de capela, em música escrita, em funções musicais de significado europeu e exclui todo o restante. Foi a partir dessa visão que se desenvolveu a cultura nacionalista, noção que não existia em nossa massa populacional até tarde no século XIX. Os brasileiros do século XVIII sequer se chamavam de brasileiros, mas de portugueses! Por que, então, tentar explicar um repertório de um ponto de vista que não existia na época? Para mim, o conceito de "música brasileira" é apenas uma junção de duas palavras sem um significado absoluto.

Hoje em dia se discute muito o papel da música na educação do país. Nas universidades, vivemos um impasse entre a formação tecnóloga versus a formação académico-artística. Como analisa a questão?

Confesso que não tenho uma apreciação muito definida sobre o assunto, pois ainda estou na fase de sentir essa dificuldade - o quão complexo é esse problema no dia a dia na sala de aula e mesmo com alguns colegas de docência. Entretanto, é fato que os cursos de música nas universidades e nas faculdades brasileiras têm uma forte herança da cultura de conservatório, isso é, da formação técnica de instrumentistas e cantores, apesar de termos avançado na questão mais acadêmica, de reflexão e pesquisa artística. Em parte, as universidades ajudam na formação técnica dos instrumentistas, mas me parece um desperdício usar todo seu aparato só para isso. Acho um desperdício o aluno ir à universidade apenas querendo receber esse tipo de instrução. Isso é algo que o próprio Mário de Andrade já havia apontado em sua mensagem como paraninfo na formatura de 1935 do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Na ocasião, ele disse que havia quatorze anos que perguntava aos alunos o que eles pretendiam estudar. Um dizia que tinha ido estudar piano; outro, canto; outro, violino - nenhum havia respondido que estava lá para estudar música. Ele relata uma situação que, passado quase um século, continua muito parecida. Vivemos o conflito de dois objetivos distintos, isso é, a formação do artista e a reflexão sobre a arte. Via de regra, caímos na função meramente profissional do músico e no abastecimento do mercado. Assim, a universidade perverte sua função - que é a da produção de conhecimento - por conta de uma demanda da era industrial e das leis de mercado. Nos Estados Unidos e na Europa, as universidades não são tão subservientes ao mercado como somos por aqui. Especialmente no Brasil, a universidade está deficitária no que se refere ao desenvolvimento de valores, e a música cai nesse impasse.

Mas há um lado bom nessa dicotomia. De novo, o próprio Mário de Andrade afirmava achar um pouco estranho a presença de músicos em universidades (lembremos que na época não havia um curso sequer em nível superior no país), mas que isso seria muito melhor do que o músico só ficar em uma orquestra, preocupado apenas com o salário e em falar mal de seus colegas.

Atualmente você elabora um projeto singular ao propor na universidade a disciplina música e desenvolvimento humano. O que é isso?

Conceitualmente, é muito simples, pois é uma tentativa de buscar no pensamento acadêmico uma relação da música voltada diretamente às necessidades e aos valores humanos. Trata-se de discutir a objetividade da música em termos e parâmetros humanos, não institucionais, nacionais, ideológicos, etnocêntricos, mercadológicos, estratégicos, tal como é normalmente feito na academia e no mercado.

Parte dessa ideia veio de reflexões que fiz sobre questionamentos levantados pelo filósofo Max Horkheimer, que critica a forma como a civilização estimula a discussão metodológica e elimina a discussão objetivista. A visão metodológica está a serviço da indústria e do mercado, já entrega o objetivo pronto, e oabe a você se virar para achar o melhor método de alcançá-lo. Mas o fato é que essa atitude não gera um serviço humano com muita eficácia, e com isso cria-se, ironicamente, músicos menos eficazes, apesar de todo o investimento na formação técnica. Hoje começa a ser possível abordar a questão de maneira mais direta, a partir das próprias linhas acadêmicas de que dispomos, tais como a etnomusicologja - que de forma pioneira quebrou a ideia de música como fenômeno exclusivamente europeu -, a musicoterapia, a educação musical, a estética e a filosofia da música. O questionamento que faço é como abrir essa pergunta no meio musical inteiro, e não apenas num congresso, numa sala de aula. Como abrir essa questão não só no meio musical, mas no social e humano, como falar de objetivos humanos na música? De outro ponto de vista, o que estou propondo é um questionamento do que podemos chamar de uma "normose musical". Na psicologia, a normose é vista como uma doença na qual a pessoa acredita que aquilo que é comum, corriqueiro ou "normal" seja naturalmente benéfico, mesmo que, na verdade, seja prejudicial a ela ou à sociedade. Parece bom apenas porque todos o fazem, mas sabemos que não é porque todo mundo faz que é bom. O que estou propondo é uma reflexão disso do ponto de vista musical.