ARTIGO ORIGINAL Museus brasileiros recriam propostas curatoriais
Revista Pesquisa Fapesp
Dezembro de 2022
Autoria: Christina Queiroz
Debates que ganharam fôlego nos últimos 20 anos em campos do conhecimento como história e antropologia têm levado museus brasileiros a oferecer ao público novas formas de pensar, organizar e expor seus acervos. Por meio de propostas de curadoria que engajam a participação de diferentes segmentos da sociedade, pinturas históricas deixaram de ser apresentadas como reprodução fidedigna da realidade, objetos artísticos têm sido descobertos em reservas técnicas e peças etnográficas ganharam camadas inéditas de significado.
Esse processo de transformação, que começou em circuitos acadêmicos e museológicos, foi impulsionado por políticas públicas e hoje pode ser visto em salas de exposição de grandes instituições, está alinhado com as discussões promovidas desde 2016 pelo Icom (Conselho Internacional de Museus). Ponto culminante desse movimento é a nova definição de museu aprovada pelo conselho em agosto deste ano, com a incorporação de termos como sustentabilidade, diversidade, comunidade e inclusão. De acordo com o Icom, museus são instituições que “[…] pesquisam, colecionam, conservam, interpretam e expõem o patrimônio material e imaterial”, são “acessíveis e inclusivos, fomentam a diversidade e a sustentabilidade” e, com a participação de comunidades, “proporcionam experiências diversas para educação, fruição, reflexão e partilha de conhecimento”. A arquiteta Renata Vieira da Motta, presidente do Icom Brasil, avalia que a nova definição funcionará como guia para instituições brasileiras revisarem seus processos e práticas, ao reafirmar a importância do papel social dessas instituições. “Além disso, a definição deverá funcionar como referência à formulação de políticas públicas no campo museológico, contribuindo para a construção de ações e programas”, afirma.
Na perspectiva do historiador Paulo Knauss, da UFF (Universidade Federal Fluminense) e vice-presidente do IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), do Rio de Janeiro, as novas propostas curatoriais representam um momento de inflexão para grande parte dos tradicionais museus brasileiros que, segundo ele, permaneciam ligados a um tipo de curadoria marcada por características enciclopédicas com ênfase descritiva. “No caso de museus de história, isso significa que peças e quadros expostos ganharam estatuto de verdade e a representação do passado era confundida com a realidade”, explica Knauss, que dirigiu o MHN Museu Histórico Nacional (Museu Histórico Nacional) entre 2015 e 2020. Nesse sentido, ele cita o exemplo do quadro Independência ou morte!, do pintor paraibano Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1905), que foi restaurado e está exposto no Museu Paulista . “Ao expor obras como essa, é preciso fazer um trabalho curatorial que evidencie que ela não é o passado encarnado, mas uma interpretação do passado, instigando os espectadores a refletir por que não há escravizados na cena ou por que todos os personagens estão com trajes tão limpos se estavam no meio de uma viagem dura e cansativa? Com isso, é possível abandonar uma atitude passiva e dialogar com o que é observado, algo que é trabalhado pelo Museu Paulista”, sustenta o historiador.
Apesar de sua disseminação em anos recentes, as transformações em propostas curatoriais fazem parte de um longo processo. A museóloga Marília Cury Xavier, do MAE-USP (Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo), localiza na década de 1970 a intensificação da busca de museus pela ampliação de seu papel na sociedade. “Novas posturas da pesquisa histórica e antropológica passaram a olhar os povos originários não apenas como objetos, mas também como sujeitos, e alteraram as políticas de gestão e aquisição de acervos”, destaca.
Além do papel do conhecimento científico, o museólogo Mário de Souza Chagas, da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) e diretor do Museu da República, afirma que a Política Nacional de Museus – Memória e Cidadania, instituída em 2003 com o objetivo de democratizar as instituições e o acesso a bens culturais brasileiros, também impactou a formulação de propostas curatoriais. “No Museu da República, um dos reflexos foi a criação da Galeria do Lago, que há cerca de duas décadas propõe relações com a história do Brasil a partir do trabalho de artistas contemporâneos”, comenta. A escultura A grande peleja, do artista goiano Paul Setúbal, atualmente exposta na galeria, é um exemplo desse diálogo. Réplica em bronze do capacete utilizado pela guarda imperial de honra de dom Pedro I (1798-1834), ao mesmo tempo que exibe a imagem de São Jorge lutando contra um dragão, a obra apresenta o capacete deformado por um golpe de lança. “Setúbal busca na história elementos e símbolos que falam de liberdade e independência quando, 200 anos depois da proclamação, ainda lutamos para aniquilar dragões que nos perseguem”, interpreta Isabel Portella, diretora da galeria.
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