Pesquisa pioneira mostra que prática regular de força melhora memória e estrutura cerebral de pessoas com comprometimento cognitivo leve
Uma nova pesquisa conduzida por cientistas brasileiros indica que a musculação, além dos conhecidos benefícios físicos, também exerce um papel significativo na proteção do cérebro de idosos contra demência . O estudo foi realizado por 16 pesquisadores do Instituto de Pesquisa sobre Neurociências e Neurotecnologia (Brainn) , da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) , e publicado na revista científica GeroScience
A pesquisa acompanhou, ao longo de seis meses, 44 idosos com comprometimento cognitivo leve (CCL) — condição que representa uma fase intermediária entre o envelhecimento normal e o Alzheimer. Os resultados surpreenderam: idosos que praticaram musculação moderada a intensa duas vezes por semana apresentaram melhorias estruturais no cérebro e avanços em funções cognitivas , sobretudo na memória.
Benefícios cerebrais mensuráveis
Os participantes que aderiram ao programa de força muscular apresentaram preservação significativa do hipocampo e do precuneus , duas regiões diretamente associadas à memória e à orientação espacial — áreas geralmente afetadas nos estágios iniciais da demência. O estudo também apontou melhora na substância branca , estrutura responsável por conectar diferentes áreas cerebrais, permitindo a comunicação eficiente entre neurônios.
“Todos os indivíduos do grupo que praticou musculação apresentaram evolução positiva na memória e na anatomia cerebral. Cinco deles chegaram ao final do estudo sem mais atender aos critérios clínicos de comprometimento cognitivo leve , o que é notável”, explica Isadora Ribeiro , doutoranda vinculada à Unicamp e primeira autora do artigo.
Metodologia científica
Para mapear as mudanças cognitivas e anatômicas, os pesquisadores aplicaram testes neuropsicológicos e exames de ressonância magnética antes e depois do período de seis meses. A comparação entre imagens e índices permitiu observar que a musculação não apenas interrompe a progressão de atrofias cerebrais como pode reverter, em parte, os efeitos do envelhecimento cognitivo.
A descoberta é particularmente relevante diante dos dados demográficos: segundo o Relatório Nacional sobre a Demência , divulgado pelo Ministério da Saúde, cerca de 2,71 milhões de brasileiros com 60 anos ou mais vivem com algum tipo de demência . O número pode chegar a 5,6 milhões até 2050 , caso não haja intervenções preventivas eficazes.
O mesmo relatório aponta que até 45% dos casos de demência são potencialmente evitáveis , com ações preventivas relacionadas a fatores como atividade física, controle da hipertensão, combate à depressão e à obesidade, e inclusão social . A musculação aparece, nesse contexto, como ferramenta promissora.
O caso de Shirley: força, memória e superação
A atriz, professora aposentada e modelo Shirley de Toro , de 62 anos, é um exemplo vivo dos efeitos positivos do exercício de força. Frequentadora do centro de ginástica multifuncional do Sesc Santana , na zona norte de São Paulo, ela encontrou na musculação um aliado não apenas para o corpo, mas também para a mente.
Diagnosticada com epilepsia na juventude, Shirley passou por cirurgia cerebral e, após sofrer um atropelamento que causou fraturas e dores persistentes, foi indicada à fisioterapia. No entanto, foi na musculação que encontrou a reabilitação mais eficaz. “ Comecei a pegar peso e as dores simplesmente pararam. Melhorou muito. Faço todo tipo de exercício. ”
Durante a pandemia, quando perdeu a mãe e enfrentou o isolamento social, a disciplina nos treinos – mesmo adaptados para o ambiente doméstico – ajudou a preservar sua saúde mental. “A gente acha que nunca vai sentir falta de treinar, mas eu sinto. E quando não posso vir, tento compensar no metrô, nas escadas. O importante é não parar.”
Entendimento técnico: mais massa, mais autonomia
De acordo com Alessandra Nascimento , técnica da Gerência de Desenvolvimento Físico-Esportivo do Sesc São Paulo, a musculação deve ser parte do cotidiano dos idosos. Ela explica que, até pouco tempo, havia resistência à prática de força para essa faixa etária, mas os estudos mais recentes mudaram essa perspectiva.
“Hoje, sabemos que a perda de massa muscular, força e equilíbrio começa aos 30 anos , e se acelera após os 60. Trabalhar com sobrecarga – seja com pesos, elásticos ou o próprio corpo – ajuda a prevenir quedas, aumenta a autonomia e melhora a cognição ”, afirma a especialista.
Ela ressalta que a musculação pode ser feita de forma adaptada e segura, com orientação profissional, e que deveria ser mais amplamente oferecida por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) . “Precisamos de políticas públicas que incluam o profissional de educação física nas UBSs , em ações integradas com médicos e fisioterapeutas. O educador físico é fundamental para promover envelhecimento saudável.”
A musculação como política de saúde pública
Com o envelhecimento acelerado da população brasileira, especialistas defendem que o acesso a atividades físicas estruturadas – incluindo musculação – seja visto como política pública de saúde preventiva . A proposta inclui não apenas a ampliação de equipamentos e espaços adequados, como a valorização da equipe multidisciplinar.
A musculação, segundo os pesquisadores da Unicamp, pode ser especialmente estratégica para adiar ou impedir o avanço de doenças neurodegenerativas , cuja incidência tende a crescer nos próximos anos. Com impacto positivo já comprovado em pacientes com CCL, a prática tem potencial para reduzir custos com internações, medicamentos e cuidadores, além de proporcionar mais qualidade de vida e independência a milhões de brasileiros