Quando lançamos a Agência Bori em fevereiro deste ano, iniciativa que conecta a ciência nacional inédita a jornalistas de todo o país, uma das preocupações centrais era ter um equilíbrio de áreas do conhecimento divulgadas, uma distribuição significativa por região do país no qual os estudos foram produzidos e, claro, igualdade de gênero dos autores dos trabalhos acadêmicos do país. Ainda é difícil convencer um cientista no Brasil a falar sobre o seu trabalho com a imprensa. No caso das pesquisadoras mulheres, é mais difícil ainda.
Cientistas, de maneira geral, não estão acostumados a interagir com jornalistas no Brasil. Isso acontece porque a prática científica por aqui exige que os pesquisadores discutam seus trabalhos acadêmicos “entre pares”, ou seja, na sala de aula, em congressos acadêmicos, em periódicos científicos, mas não diretamente com a sociedade. Não há uma interpretação institucional no Brasil de que o contato com a imprensa seja parte da prática acadêmica.
Esse é um dos motivos pelos quais 90% da população brasileira não sabe mencionar uma instituição de pesquisa ou o nome de um cientista do país, de acordo com levantamento de percepção pública da ciência divulgada pelo MCTIC em julho de 2019 (quem se lembra, aliás, menciona três cientistas: Oswaldo Cruz, Santos Dumont e Marcos Pontes. Os dois primeiros morreram há cerca de 100 anos; todos são homens). Pouca gente sabe que estamos entre os 15 maiores produtores de ciência no mundo e que os pesquisadores no Brasil, sozinhos, são responsáveis por uma média de 230 novos artigos científicos por dia. Você sabia disso?
A Bori surgiu para antecipar para jornalistas cadastrados parte desse estudos, acompanhados de texto explicativo e do telefone celular do principal autor. A inspiração veio de modelos semelhantes de países como os Estados Unidos e a proposta é aumentar a presença de ciência na mídia por aqui. Na prática, a gente mapeia os trabalhos saindo do forno e procura imediatamente o autor de trabalhos científicos interessantes. Temos uma recusa de 20%, mulheres tendem a recusar mais.
Na prática, cientistas mulheres procuradas pela Bori — ou diretamente pela imprensa — ficam mais reticentes. Muitas acabam indicando um chefe de departamento (homem) ou um orientando (também homem) para falar sobre o seu próprio trabalho. Outras simplesmente declinam. Isso faz com que o “cientista” que prevalece nos meios de comunicação — em jornais, TV, rádio, etc — seja prioritariamente um homem. E a imagem social de que ciência e tecnologia sejam algo masculino, assim, acaba se perpetuando.
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Quando indicam superiores para falarem sobre um trabalho acadêmico, as cientistas provavelmente apontarão um porta-voz masculino. Isso porque a maioria dos chefes de departamento, de grupos de pesquisa, de programas de pós-graduação são homens — mesmo em áreas da ciência consideradas “femininas”. E quanto maior o cargo na ciência, maior é a presença dos homens. Elas são apenas de um terço das reitorias das universidade federais do país. Unicamp e Unesp nunca tiveram uma reitora mulher, a USP teve uma mulher em toda a sua história (Suely Sampaio, 2005-2009). A agência federal de fomento à ciência CNPq nunca teve um presidente homem, assim como a estadual paulista FAPESP. Nunca tivemos uma ministra de Ciência. Por aí vai.
Apesar disso, as cientistas mulheres publicam hoje a mesma quantidade de artigos científicos de seus colegas homens. De acordo com relatório do “Gender in the Global Research Landscape” (gênero no cenário global de pesquisa), de 2017, um dos mais importantes na avaliação recente da produção acadêmica feminina no mundo, as mulheres são responsáveis por 49% dos trabalhos científicos do Brasil. Claro que há irregularidades por área do conhecimento — elas desaparecem em exatas e crescem em biológicas, por exemplo, — mas na média sabemos que as cientistas mulheres fazem muita ciência por aqui.
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Homens, vale destacar, também têm mais disponibilidade para falar com a imprensa sobre assuntos gerais da ciência, que extrapolam seus trabalhos específicos. Isso fica evidente, por exemplo, no contexto da pandemia de Covid-19. Na ocasião da primeira confirmação de caso no Brasil, em 26 de fevereiro, a Bori montou um banco de fontes disponíveis para falar com a imprensa sobre temas como álcool gel, máscaras, quarentena, diagnósticos, vacinas. Hoje, a Bori conta com quase 850 jornalistas de 23 estados do país consultando o banco que tem 200 nomes de cientistas brasileiros para suas reportagens sobre o novo coronavírus – apenas um terço deles são mulheres.
A resistência das mulheres para falar sobre os seus trabalhos é longa conhecida da literatura que se debruça sobre isso. Mulheres são desestimuladas a falar desde a infância e, quando se posicionam, tendem a ser muito mais criticadas do que os homens. Mulheres também são mais sobrecarregadas com família e atividades domésticas, ou seja, têm menos tempo para atender a imprensa, por exemplo, à noite ou aos finais de semana. Cabe a instituições científicas, no entanto, estimular cientistas mulheres e trazê-las para o debate.
Se as mulheres são metade da nossa produção do conhecimento científico do país, está na hora de serem, também, metade dos cargos de gestão e dos porta-vozes na imprensa.
* Sabine Righetti é pesquisadora e professora do Labjor-Unicamp na área de comunicação de ciência e coordenadora da Agência Bori (Instituto Serrapilheira/Fapesp)