Quando começou a correr, há pouco mais de um ano, o analista de sistemas Renato Teixeira de Camargo, 31, cumpriu o protocolo dos iniciantes: fez exames cardiológico, ergoespirométrico, mediu o percentual de gordura. Estava apto. Mas, naquela época, ele já sentia leves dores nas costas. Com o exercício, as dores não só aumentaram como também chegaram aos joelhos e calcanhares.
Camargo procurou um ortopedista, fez raio-X, tentou até a acupuntura. Somente numa sessão de quiropraxia foi que descobriu o problema: tinha uma perna novemilímetros mais curta que a outra, causa de um pequeno desvio na coluna Usando uma palmilha de correção há dois meses, as dores sumiram e seu desempenho na corrida melhorou. 'Diminuí cinco minutos nos 10 km", afirma.
Assim como no caso do analista de sistemas, muitos outros corredores convivem com pequenas dores e chegam a sofrer lesões sem saber realmente a causa, pela falta de um exame ainda pouco considerado pelos atletas amadores: a avaliação postural. Nos corredores, ela acaba muitas vezes restrita à análise da pisada, motivada mais pela compra do tênis.
Mas, assim como o pé varia em cada indivíduo, o restante do corpo também tem diferenças: desvios, encurtamentos e assimetrias, ainda que pouco perceptíveis. Muitas vezes a dor nem aparece, mais tais desvios comprometem a boa postura —definida como a posição harmônica e em equilíbrio com o centro de gravidade, para manter o corpo ereto no menor esforço físico.
Mais da metade da população brasileira tende a pender para a direita e apenas 24 tem a altura exatamente igual para os dois lados do corpo, segundo estudo da Faculdade de Medicina da USP.
Na busca do equilíbrio, o corpo sempre "dá um jeitinho", procurando compensar essas diferenças com adaptações, ainda que isso custe novos problemas, como lombalgias —a popular "dor nas cadeiras" e báscula quadril (inclina anormais) Para que o olhar se mantenha na linha do horizonte, por exemplo, o indivíduo pode desenvolver uma escoliose, a curvatura lateral da coluna, existe equilíbrio perfeito nem uma postura correta para todas as pessoas. Os ginastas são os que mais se aproximam da condição ideal. O normal é oscilarmos o centro de gravidade do nosso corpo quatro graus para cada lado. Todos temos assimetrias", diz o fisioterapeuta Vitor Tosi, especialista em podoposturologia.
Coluna é tão importante quanto o cérebro Desde que resolvemos nos pôr de pé, passamos sofrer com o peso da gravidade. "Não bastasse a posição bípede não ser adequada para nós, ainda passamos a carregar peso. Devíamos nascer com um guia de uso. Não sabemos como cuidar da nossa coluna e ela é tão importante quando o nosso cérebro", afirma o diretor do Instituto Internacional de Quiropraxia, Jason Oilbert, 37, também maratonista e terapeuta do velejador Robert Sheidt.
A quiropraxia é uma prática manual que faz uso de ajustes biomecânicos em músculos e articulações para corrigir a postura corporal e tratar até de males aparentemente não relacionados. Gilbert diz que sempre utiliza a técnica após uma prova. "Quase sempre acho alguma coisa Que máquina não precisa de manutenção?"
Mas, mesmo sem o tal guia de uso, o que não falta são recomendações para o dia-a-dia da mochila que carregamos até a forma de frente ao computador. Na prática da corrida não é diferente. Ao contrário, ela exige ainda mais cuidados com a postura pelo impacto que traz ao sistema músculo-esquelético. "Quando sentamos, a pressão sobre os discos da nossa coluna é dez vezes maior do que quando estamos deitados. Tem pessoas que trabalham por horas sentados de forma incorreta e depois vão correr. Não é surpresa que os corredores tenham problemas" diz o quiropraxista.
Um simples tropeção na calçada foi suficiente para que a técnica judiciária Margarete Augusta Soares, 38, desse um tranco na coluna e passasse a sentir dor nas costas ao correr. Embora os médicos chegassem a cogitar uma hérnia de disco, o problema se resolveu com alguns ajustes na coluna. "Senti que fiquei mais solta e mais leve para correr. Nessa avaliação, também descobri que tenho as pernas em xis, com os joelhos voltados para dentro e um encurtamento do glúteo. Não sinto dor, mas falta de agilidade", diz Margarete.
"Observo que muitos atletas praticam a corrida de forma muito rígida, elevam os ombros excessivamente e projetam a cabeça para frente. Isso para não falar da corrida em terrenos inclinados, como à beira da praia, responsável por boa parte dos casos de desvio sacro-ilíaco [bacia]", aponta o fisioterapeuta e presidente da Sociedade Brasileira de RFG (Reeducação Postural Global), Oldack Borges Barros. Segundo ele, que atende triatletas jogadores de vôlei e outros e até mesmo as sessões de alongamento não terão o mesmo aproveitamento se os músculos e articulações não estiverem corretamente posicionados.
Além de prevenir traumas e lesões, a boa postura também ajuda no desempenho da corrida, pela biomecânica eficiente e, conseqüentemente, economia de oxigênio. Veja como se portar:
O exame
Para detectar as anomalias na postura corporal, ortopedistas, fisioterapeutas e professores de educação física ainda se valem da observação clínica e do uso de raios-X, o que pode ser considerado impreciso em caso de avaliações mais minuciosas. A fisioterapia e técnicas alternativas ou complementares —como RPG e quiropraxia— aliam a observação a exercícios e posições (manobras) e até a pesagem de cada lado do indivíduo, por meio de duas balanças simultâneas.
Para uma análise mais específica, no entanto, alguns corredores já fazem uso da baropodometria, um exame caro, entre R$ 120 e R$ 200, não coberto pelos planos de saúde e restrito a poucos profissionais, em função da tecnologia mais sofisticada. Por meio de sensores em uma palmilha, ele consegue analisar objetivamente os pontos de pressão exercidos pelo corpo na planta do pé quando estamos parados e andando e assim determinar, não só o tipo de pisada, mas as oscilações posturais.
Após adquirir uma canelite por excesso de treinos e uso de tênis inadequado, o publicitário e apresentador Guilherme Arruda, 30, teve desvio de quadril e a alteração na rotação do tronco. Após a análise do baropodômetro, tratou o problema com palmilhas proprioceptivas, que ele usou por dois meses, seguindo o método da podoposturologia. "A palmilha tinha umas borrachinhas que ajudaram a reequilibrar o meu corpo, tirando a pressão de alguns pontos do pé. No primeiro treino com ela, eu já não senti mais dor", conta Arruda.
Em função da pouca disponibilidade de recursos objetivos para a avaliar a postura de pacientes e alunos, um grupo de fisioterapeutas da Universidade de São Paulo desenvolveu no ano passado um software gratuito que pode ser baixado pelo site e usado inclusive por leigos: www.sapo.incubadora.fapesp.br
"Por meio de informações como a distância de pontos anatômicos do corpo e angulações, o programa consegue avaliar quantitativamente as assimetrias corporais ser um instrumento mais objetivo para os profissionais", informa a professora do curso de fisioterapia da USP Amélia Pasqual Marques.
Independentemente de uma avaliação, não se deve relaxar com a postura, mas, literalmente, também não é preciso ser um militar, rígido demais. Ainda que haja correções pós-tratamento, os problemas podem voltar, é até comum, em função dos processos adaptativos corpo; o que exige algumas "revisões". Portanto, vigilância com os movimentos e posições corretos nas tarefas diárias e fortalecimento dos músculos estabilizadores, como os abdominais, são importantes para se endireitar. Na comparação do quiropraxista Jason Gilbert cuidar coluna é como cuidar do dentes. "A escovação é importante sempre após as refeições, mas, mesmo assim, preciso fazer visitas periódicas ao dentista, pois alguma cárie pode aparecer. Devemos ter a mesma preocupação com a nossa coluna."
INFLUÊNCIAS NA POSTURA
Assim como o equilíbrio, a postura é regulada de maneira autonôma pelo Sistema Nervoso Central, que se vale vários "sensores" ao longo do corpo: planta dos pés, tornozelos, joelhos, ouvido, olhos, músculos e cérebro.
Alguns fatores indiretos, a longo prazo, interferem nossa postura:
Cicatrizes no tórax e lombar: também causam retração de fáscia pela fibrose no tecido.
Distúrbios viscerais (colites crônicas, cólicas e gastrites): podem levar à retração da fáscia abdominal, causando inflexão do tronco (a pessoa tende a se encolher).
Obesidade: o excesso de peso acentua as curvaturas da coluna, do joelho e do tornozelo, aumentando a pressão e as angulações nas articulações.
Olhos (convergência, fadiga visual, uso de óculos): responsáveis pela estabilidade do centro de gravidade, a visão pode comprometer a noção espacial, gerando compensações no pé em contato com o solo. Enquanto a visão focal, que identifica objetos, serve também para regular a posição da cabeça e do corpo, a visão periférica está relacionada com a orientação do indivíduo no espaço e o seu equilíbrio dinâmico.
Oclusão dos dentes (mordida cruzada, anterior ou profunda): os músculos da mandíbula têm ligação com a cervical e podem causar inclinações de tronco e atingir toda a coluna.