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Jornal da USP online

Momento de transformação

Publicado em 28 janeiro 2015

A sociedade do século 21 precisa passar por profundas mudanças nos modos de vida e nos hábitos de consumo, mas também nos valores que guiam as instituições científicas. Esses são alguns dos diagnósticos apresentados na edição de número 82 da revista Estudos Avançados, editada pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. Dividida em dois blocos temáticos, o primeiro deles traz Sociedade e Ambiente, com introdução de José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, que apresenta ao leitor-pesquisador o ponto central debatido nos artigos agrupados neste eixo por meio do resgate histórico do desenvolvimento do termo “sustentabilidade” e do significado da expressão “desenvolvimento sustentável”.

Os trabalhos que compõem esse bloco revelam o imbricamento das questões pertencentes ao meio natural com os modos de vida urbanos. A mudança climática aparece desde o âmbito local até o global. No momento em que a população de São Paulo sofre com a prolongada estiagem, José Nilson B. Campos, professor do Programa de Recursos Hídricos da Universidade Federal do Ceará (UFC), oferece uma análise da evolução das políticas públicas para o enfrentamento das secas no Nordeste. Campos retorna ao período colonial e divide essa história, de 1583 até o século 21, em cinco fases: defrontando-se com as secas, a busca do conhecimento, a hidráulica da solução, o desenvolvimento regional e o desenvolvimento sustentável.
Helena Ribeiro, professora titular da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, e Sofia Lizarralde Oliver apresentam um estudo que verificou a correlação entre a presença de cianobactérias indicadoras da qualidade da água na Represa Guarapiranga e as variáveis climáticas da região metropolitana de São Paulo. Elas alertam que a ocorrência de tempestades e as temperaturas mais elevadas durante o período chuvoso podem levar a um aumento na proliferação de cianobactérias no reservatório, prejudicando a qualidade da água e expondo a riscos de saúde uma população da ordem de 3,7 milhões de pessoas, o equivalente a 18% da população da região metropolitana.
O professor Wagner Costa Ribeiro, do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, critica o entusiasmo de certos setores com a possibilidade de exploração do gás de folhelho – popularmente conhecido como “gás de xisto”, embora não seja de xisto – em território brasileiro, apontando os graves impactos socioambientais associados à exploração do recurso, sua baixa rentabilidade, seu caráter não-renovável e o destino da produção. O primeiro bloco da edição 82 da Estudos Avançados discute, ainda, os processos de licenciamento de hidrelétricas no Brasil, a requalificação de áreas contaminadas na capital paulista e a forma como habitantes de diferentes países enxergam a questão das mudanças climáticas e as ameaças e desafios que elas representam.

Novos parâmetros – O segundo bloco temático da revista, intitulado Ciências, Valores e Alternativas, dossiê também publicado na revista Scientiae Studia, tem duas partes. A primeira traz os pressupostos teóricos de uma proposta de transformação na ciência que defende a adoção de um novo modelo de interação entre as atividades científicas e os valores que as sustentam como possibilidade para um desenvolvimento tecnocientífico compatível com a justiça social, a democracia participativa e a sustentabilidade. O novo modelo é definido como “pesquisa multiestratégica” por Pablo Rubén Mariconda, da FFLCH, e Hugh Lacey, professor do Swarthmore College, na Pensilvânia, Estados Unidos, e pesquisador visitante da Fapesp.
Em uma escala de possibilidades para os cientistas, a pesquisa multiestratégica seria o ponto oposto à tecnociência comercialmente orientada. Lacey e Mariconda identificam esta tecnociência comercial como tendência predominante atualmente nas instituições de pesquisa e criticam o modelo por, ao incorporar os valores do progresso técnico e do mercado, pecar principalmente pela falta de neutralidade nas etapas do trabalho. Eles propõem, em oposição, a adoção de pluralismo estratégico nas etapas da pesquisa, incluindo estratégias sensíveis ao contexto no qual se insere o fenômeno estudado. Eles compreendem que a nova abordagem pode resolver as contradições da tradição científica moderna em relação aos ideais de abrangência, neutralidade e imparcialidade, além de ser particularmente útil a áreas de estudo como tecnologia social, agroecologia, saúde pública, sustentabilidade e manejo florestal, informática e comunicação.
A discussão sobre o modelo de interação entre as atividades científicas e seus valores apresentada em forma de dossiê pela Estudos Avançados é resultado do trabalho desenvolvido nos últimos anos pelo Grupo de Pesquisa de Filosofia, História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia do IEA, coordenado pelo professor Mariconda.  Nesta primeira parte do dossiê, também assinam artigos Marcos Barbosa de Oliveira, professor da Faculdade de Educação; Ivan Domingues, professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (MG); e Sylvia Gemignani Garcia, professora do Departamento de Sociologia da FFLCH.

Na segunda parte, o dossiê submete a um exame rigoroso o projeto neoliberal para as ciências. Barbosa tece uma crítica aos processos de “empresariamento da ciência”, incluindo a introdução de métodos quantitativos produtivistas para avaliar a atividade científica e sugere, como contraponto, a adoção da concepção de W. Hagstrom em seu artigo “A Dádiva como Princípio Organizador da Ciência”. Domingues procura oferecer alternativas à ética utilitarista do que chama de “taylorismo acadêmico”. Já Garcia aborda os valores que orientam a produção científica ao estudar o caso da Rede de Tecnologia Social, criada no Brasil em 2005, e suas potencialidades para reorientação da economia.
Revista Estudos Avançados, número 82, editada pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP (332 págs., R$ 30,00).