Pesquisadores do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), em parceria com a empresa Golden Technology, conseguiram produzir em escala uma molécula derivada do corante ftalocianina capaz de inativar o SARS-CoV-2.
Testes feitos no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB-USP) e publicados na revista Scientific Reports demonstraram que o composto reduziu em 99,96% a carga viral em culturas de células sem causar alterações metabólicas (efeitos citotóxicos).
Já um ensaio clínico conduzido por pesquisadores da Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB-USP) revelou que o uso intensivo de um enxaguante bucal contendo o composto antiviral por pacientes internados em um hospital público da cidade, em estágio inicial da infecção, contribuiu para diminuir os sintomas e o tempo de internação.
Os estudos tiveram apoio da FAPESP.
“A molécula é capaz de se ligar ao oxigênio presente no ar. Quando ocorre essa ligação, o oxigênio torna-se mais ativo, causando danos oxidativos no vírus”, diz à Agência FAPESP Koiti Araki, professor do IQ-USP e coordenador do projeto.
A ftalocianina de ferro possui grupos aniônicos – grupos iônicos com carga negativa – que ativam o íon de ferro situado no centro da molécula para que consiga se ligar ao oxigênio presente no ar e torná-lo reativo. Dessa forma, o oxigênio passa a se comportar como o ozônio ou o peróxido de hidrogênio, causando danos oxidativos em microrganismos como vírus, fungos e bactérias.
Em parceria com pesquisadores da empresa Golden Technology, sediada em São José dos Campos, Araki conseguiu nos últimos anos desenvolver um processo para produzir a molécula em escala.
“Esse ativo é difícil de produzir e os rendimentos eram muito baixos. No laboratório, conseguimos desenvolver um processo que diminuiu em mais de 90% a quantidade de resíduos e reagentes, bem como o tempo de produção”, afirma Araki.
Aplicações anti-COVID-19
A ideia inicial era aplicar a molécula para eliminar odores desagradáveis produzidos por microrganismos em tecidos e para a remoção de germes em diversos tipos de ambientes.
Com o surgimento da COVID-19, os pesquisadores tiveram a iniciativa de avaliar se o composto seria capaz de causar danos oxidativos no SARS-CoV-2 e inativá-lo. Para isso, procuraram o professor do ICB-USP Edison Luiz Durigon, que coordena um laboratório com nível 3 de biossegurança (NB3), onde é possível manipular patógenos como o SARS-CoV-2.
O grupo de Durigon foi o primeiro no Brasil a isolar e cultivar em laboratório o novo coronavírus, a partir de amostras coletadas dos primeiros pacientes brasileiros diagnosticados com a doença no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo (leia mais em https://agencia.FAPESP.br/32692/). Após esse feito, os pesquisadores passaram a ser procurados por startups e empresas interessadas em testar a eficácia de produtos voltados ao combate da COVID-19, como testes de diagnósticos e nanopartículas de prata com ação virucida aplicadas na superfície de diversos tipos de materiais, produzidas pela Nanox – uma empresa apoiada pelo Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE), da FAPESP.
“Já testamos no laboratório vários antivirais que funcionaram contra o SARS-CoV-2, mas nenhum em uma concentração tão baixa quanto essa molécula”, compara Durigon.
“O composto tem ação imediata contra o vírus. As reações oxidativas provocadas por ele destroem o envoltório lipoproteico do novo coronavírus”, relata o professor do ICB-USP.
Após a ação da molécula ser comprovada, a Golden Technology desenvolveu e lançou em julho de 2020 uma máscara cirúrgica antiviral recoberta com a substância.
De acordo com os pesquisadores, o efeito antiviral e a eficiência de filtração bacteriana (BFE) do material duram 12 horas. Dessa forma, é possível usar a máscara antiviral durante três horas em um dia e continuar usando nos dias seguintes até completar 12 horas de uso, por exemplo.
“Na máscara e em tecidos a ação antiviral da molécula dura muito tempo. Os ensaios que fizemos mostraram que em até 12 horas de uso o composto continua ativo nesses materiais”, diz Durigon.
Produtos de higiene bucal
Antes da pandemia, os pesquisadores da Golden Technology também tinham começado a desenvolver, em parceria com a empresa Trials, uma linha de produtos de higiene bucal contendo a molécula, como pasta de dente, enxaguatório, spray e gel dental.
“A ideia era empregar as reações químicas de oxidação promovidas pela molécula para auxiliar na reparação de tecidos moles da boca, no tratamento de gengivite e na eliminação do mau hálito”, explica Fabiano Vieira Vilhena, proprietário da Trials.
Com o surgimento da pandemia de COVID-19, o foco dos ensaios clínicos mudou. Uma vez que o grupo do professor Durigon já tinha comprovado em culturas de células que a molécula é capaz de inativar o SARS-CoV-2, os pesquisadores decidiram avaliar se o enxaguatório bucal contendo o composto era capaz de diminuir a carga do vírus na saliva de pacientes infectados.
Os resultados de um dos primeiros estudos in vitro, conduzidos por pesquisadores da FOB-USP em parceria com colegas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Botucatu, mostraram que o antisséptico com o derivado de ftalocianina reduziu em 90% a carga do SARS-CoV-2 em amostras de saliva.
O trabalho foi publicado na revista Clinical, Cosmetic and Investigational Dentistry.
“Por meio desse estudo, conseguimos comprovar que a molécula é capaz de inativar o vírus na saliva”, diz Paulo Sérgio da Silva Santos, professor da FOB-USP e coordenador dos ensaios clínicos.
Com base em relatos na literatura de que a infecção pelo SARS-CoV-2 começa com a entrada e replicação do vírus na mucosa das regiões bucal e nasal, os pesquisadores tiveram a ideia de avaliar se a diminuição da carga viral na boca e na garganta por meio do bochecho e gargarejo do antisséptico bucal contendo o composto, na fase inicial da infecção, poderia contribuir para melhorar a resposta clínica dos pacientes com COVID-19.
“O contato e a colonização da mucosa bucal e nasal pelo SARS-CoV-2 ocorrem bem na fase inicial da doença. Depois de sete dias reduz muito a quantidade de vírus na boca. Portanto, a janela de oportunidade de efetividade do enxaguatório é no começo da infecção”, diz Santos.
A fim de avaliar essa hipótese, foi realizado um estudo clínico com 41 pacientes diagnosticados com COVID-19 por RT-PCR, com quadros leve ou moderado, internados no Hospital Estadual de Bauru em maio de 2020.
As análises indicaram que o tempo médio de internação do grupo de 20 pacientes que fizeram gargarejo e enxague com o antisséptico à base da nova molécula, cinco vezes ao dia e por um minuto até a alta hospitalar, foi significativamente menor em comparação com os que fizeram o mesmo procedimento usando um enxaguatório sem o ativo.
Os pacientes que usaram o enxaguatório contendo a molécula permaneceram, em média, quatro dias internados, contra sete dias dos que usaram o antisséptico sem a molécula. Além disso, o procedimento contribuiu para reduzir a gravidade dos sintomas.
Nenhum dos pacientes que fizeram o uso do enxaguatório foi para a UTI ou morreu. Em média, eles eram 15 anos mais velhos em comparação com os que não usaram o antisséptico com o ativo.
“Todos os pacientes receberam o mesmo tratamento hospitalar de cuidados padrão para COVID-19 preconizados pela OMS [Organização Mundial da Saúde], com a diferença de que o grupo de 20 pacientes fez uso do enxaguatório contendo a molécula”, diz Santos.
“Conseguimos verificar estatisticamente que o único fator que influenciou a diminuição do tempo de internação foi o uso do enxaguatório contendo a molécula”, afirma.
Tratamento adjuvante
Os pesquisadores pretendem fazer outros estudos para avaliar o tempo de ação (substantividade) do enxaguatório contendo a molécula na mucosa bucal.
A substantividade dos compostos usados nos antissépticos convencionais hoje, como a clorexidina – que não inativa o SARS-CoV-2 –, varia de oito a 12 horas. No caso da ftalocianina de ferro, ensaios preliminares indicaram que a molécula adere à mucosa bucal e tem efeito virucida por até duas horas e ação residual na orofaringe.
“Como a molécula tem o efeito de uma água oxigenada, mas que é produzida localmente em pequenas quantidades o tempo todo, a toxicidade é insignificante”, afirma Araki.
A empresa que irá comercializar o enxaguatório e outros produtos de higiene bucal contendo a molécula está readequando as fórmulas para obter os registros na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Caso os produtos sejam aprovados, a ideia é que possam ser usados como tratamento adjuvante, reduzindo a carga viral na fase inicial da infecção, enquanto o sistema imune se prepara para produzir anticorpos e combater o vírus.
“Com a diminuição da carga viral, a infecção será mais lenta, o que dará tempo para o sistema imune combatê-la. Quando começar a ter uma quantidade de vírus maior em outros tecidos que o enxaguatório não atinge, o sistema imune já estará ativo para combatê-los”, explica Durigon.