Notícia

Correio Popular (Campinas, SP)

Minúcias ortográficas e significativas

Publicado em 04 setembro 2020

Por Adilson Roberto Gonçalves

Detalhes ortográficos carregam marcas de momentos históricos, mas também são utilizados como cartão de visitas do praticante da língua. A chamada norma culta é derivada do tempo e podemos dizer que aquele que escreve errado hoje é um viajante do futuro, pois provavelmente sua escrita será considerada correta, caso a maioria um dia resolva segui-la, o que passaria a ser uma nova norma. Algumas dessas marcas são corriqueiras, outras pitorescas. Os exemplos servem para conduzir um determinado raciocínio. A divulgação científica pela Revista Pesquisa Fapesp é muito bem feita, mas na reportagem “ A energia do Germânio ”, edição de fevereiro/2020, apareceu um “ catalizadores ”, bem no meio do texto, e três linhas abaixo “ catalisador ” foi grafado corretamente.

A revista corrigiu tal disparate na versão eletrônica, mas não publicou errata na edição impressa no mês seguinte. Lapso, no mínimo, indevido a uma publicação de divulgação científica que sobrevive há tantas décadas. Em tese defendida recentemente tal grafia incorreta voltou a aparecer. Meu já falecido orientador de pesquisa, Ulf S chuchar dt, alemão de nascimento, era forte crítico do uso correto da língua portuguesa nos textos científicos. Ele utilizava o emprego correto da palavra catalisador, com s, como balizador para saber se o aluno dominava a catálise, um importante ramo da química.

O podcast semanal Foro de Teresina é fonte de cultura também, por isso me incomodou o “ seríssimo ” dito pelos apresentadores, ao invés de seriíssimo, sim, com dois is. Ainda que muitas vezes dito e até escrito seríssimo, seriíssimo é a forma correta. Palavra incomum, junto com alcoóis, como plural de álcool, tema do texto “ O contexto dos erros ” (Transformações na Terra das Goiabeiras, p. 292). Já em “ Tucanos, palavras raras e ocultas ” (site Brasil 24), discorri sobre o termo patafísica, usado por Jô Soares, que “ diz respeito a uma suposta ciência das soluções imaginárias e de leis que possam regular as exceções ”. Uma ida ao dicionário e à internet. Sérgio Rodrigues, outro colunista das boas palavras, se indignou com a ausência de bateção nos dicionários, como usado em' bateção de panelas ”. O Houaiss dá' batição ”, com i, para significar o uso de bater uma vara na água como estratégia de pesca. E, curiosamente, na definição da raiz bat, o dicionário menciona' bateção' como variante de' batição ”, mas bateção, realmente, não aparece como entrada própria. Como disse, exemplos pitorescos, mas com forte significado. Uma última situação.

Quando da recente discussão sobre a paralisação dos entregadores — os chamados motoboys- outra palavra estranha que aparece é o tal do delivery, sem explicação de uso, uma vez que' entrega' satisfaz muito bem o significado e a ação. Cabe também lembrar do inexistente disk pizza, pois o ato de dis marque zin PIN] car ou digitar os números no telefone em inglês é “ dial ”. Pura preguiça ou submissão ao trocar o' que ” por um reles k. A palavra oligopsônios ali apareceu para designar um mercado com pequeno número de compradores. O representante dessas empresas de entrega de comida apresentou artigos de higiene e seguro aos entregadores como benesses, e não como obrigações do empregador. A distorção no cálculo da remuneração não leva em consideração o número de horas de espera dos entregadores e parece que nem os custos de combustível e manutenção dos veículos. Além de oligopsônios, são osteofimáticos. Outra consulta ao dicionário. O estrangeiro pode prezar por nossa linda língua mais do que nós mesmos.

A atenção aqueles que possuem um lugar de fala mais proeminente deveria causar-lhes maiores cobranças no emprego correto da ortografia, o que nem sempre acontece, mesmo tratando-se de veículos de divulgação científica de grande renome e importância. A consulta aos dicionários deve ser tarefa prazerosa, rica em descobertas e aprendizado, sem perder sua natureza vinculada ao tempo e ao espaço. Por fim, palavras pouco usadas podem ser um excelente laboratório para rotular conteúdos difíceis, como os que compõem nossa pesada política atual. Em Adilson Roberto Gonçalves é pesquisador da Unesp, membro da Academia Campineira de Letras e Artes e do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas