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'Medicina de precisão só é precisa para os brancos', afirma geneticista (2 notícias)

Publicado em 12 de setembro de 2024

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Por Cristiane Segatto

"O Brasil está construindo seu próprio mapa genético." Assim define Lygia da Veiga Pereira, geneticista e CEO da biotech gen-t, a ambiciosa iniciativa de mapear o DNA de milhares de brasileiros. O projeto, um dos maiores e mais diversos da América Latina, busca revolucionar a medicina personalizada no país.

Ao desvendar os segredos do genoma da população brasileira, a pesquisa abre portas para o desenvolvimento de tratamentos mais eficazes e personalizados, especialmente para doenças que afetam de forma desproporcional determinadas populações. A iniciativa promete não apenas transformar a saúde no país, mas também posicionar o Brasil como um líder global em pesquisa genômica. Abaixo, leia a entrevista completa com Lygia:

VivaBem: Quais os resultados alcançados por sua empresa até agora?

Lygia da Veiga Pereira: Estamos criando uma grande plataforma de dados de saúde e genômicos da população brasileira para ser usada em pesquisa e inovação. O objetivo da gen-t é construir o maior e mais diverso banco genético da América Latina. Neste mês de agosto, alcançamos 10 mil voluntários no nosso projeto de pesquisa. Temos uma média de 900 participantes novos recrutados por mês.

Para participar do Projeto gen-t do Brasil, basta ser brasileiro e ter mais de 18 anos. Quando a pessoa é recrutada, ela assina um termo de consentimento de pesquisa. Aceita compartilhar dados sobre sua saúde e permite que a gente sequencie o seu DNA e use isso para pesquisa e inovação.

Como funciona esse processo de recrutamento?

A pessoa precisa responder a um extenso questionário sobre sua saúde e estilo de vida e permitir o acesso a seu prontuário médico. Ela também passa por uma batelada de exames de sangue e nós medimos peso, altura e pressão arterial. Em seguida, coletamos sangue para o biobanco, onde armazenamos DNA e plasma. Tentamos recuperar o máximo de informações sobre o histórico de saúde daquele paciente.

O sequenciamento do DNA já começou?

Ainda não. Esse projeto tem duas etapas. A primeira é a construção da coorte. A segunda é o desafio de transformar em dados o DNA das milhares de amostras que estão armazenadas em um freezer. Esse é um desafio financeiro. Queremos ter a coorte mais diversificada possível.

Vocês estão na fase da genotipagem das amostras?

Começamos a genotipar as amostras dos primeiros participantes. Sequenciar é determinar a ordem dos três bilhões de letras que compõem a fita dupla do DNA. A genotipagem determina em torno de 800 mil letras. É como ter uma visão panorâmica do genoma desses participantes.

Por que esse tipo de informação já é importante?

A genotipagem traz informação sobre a ancestralidade dessas pessoas.

É importante para a gente conseguir mostrar aos nossos clientes que estamos, de fato, capturando ancestralidades não europeias. Esse é o tipo de dado que falta hoje na área de genética humana. A grande maioria das pesquisas genômicas feitas no mundo usa dados de populações brancas dos Estados Unidos e da Europa.

Por que isso é um problema?

Há uma grande desigualdade no desenvolvimento da medicina de precisão. Quando uma análise de predição de risco de doenças é feita com base no conhecimento gerado a partir de genomas brancos, ela não alcança a mesma precisão se for aplicada a pessoas de outras ancestralidades. Por causa disso, países como a China estão desenvolvendo projetos genoma nacionais.

Hoje a medicina de precisão é precisa só para os brancos.

O Brasil está fora do mapa da medicina de precisão?

Sim. O brasileiro tem algo muito peculiar que é a mistura de DNA europeu, indígena e africano. Temos a maior população de ascendência africana fora da África. É preciso conhecer as variações genéticas na nossa população para podermos desenvolver uma medicina de precisão para o brasileiro.

Qual é o problema da indústria farmacêutica que sua empresa pretende resolver?

Estudar populações de outras ancestralidades aumenta a chance de fazer descobertas sobre a associação de genes com fenótipos ou com doenças. Deixar de estudar outras ancestralidades é perder oportunidades. Quando a indústria usa dados genômicos no desenvolvimento de uma nova linha de inovação ela aumenta a probabilidade de chegar a um produto. E de fazer isso mais rápido.

Isso acontece por que a indústria pode produzir drogas mais específicas?

Quando é feita a associação entre um gene e alguma doença, a proteína produzida por ele passa a ser um alvo para a indústria tentar desenvolver alguma droga para aquela doença. Às vezes, a indústria já tem um alvo e está tentando desenvolver uma molécula que inative aquela proteína. Para saber se ela causa algum efeito colateral, a empresa estuda pessoas que tenham naturalmente alguma mutação naquelas vias para ver se isso tem alguma consequência fenotípica.

A indústria farmacêutica reconhece o valor desses dados genômicos?

A indústria investe fortunas para ter acesso a esses dados porque eles podem acelerar a inovação. O Reino Unido tem um grande programa chamado UK Biobank. Diversas empresas investiram cerca de 280 milhões de libras nesse projeto público para viabilizar o sequenciamento dos genomas. Em contrapartida, elas tiveram acesso privilegiado aos dados por nove meses. Depois, eles ficaram disponíveis para todo mundo.

Qual foi a oportunidade que vocês enxergaram nesse cenário?

Além de conhecer o genoma dos brasileiros a fundo para incluir nossa população na medicina de precisão, queremos explorar essa diversidade para acelerar a inovação.

O que estamos fazendo é um grande projeto de infraestrutura. Essa estrada que estamos construindo pode permitir que vários desenvolvimentos científicos, tecnológicos e econômicos aconteçam. A gen-t também quer usar essa estrada para desenvolver alguma linha de inovação própria.

A meta inicial de alcançar 200 mil participantes se mantém?

Queremos ter 200 mil participantes até o final de 2026. É um número bem ambicioso, mas possível. Esse equilíbrio entre ser ambicioso e realista é delicado. O Reino Unido, com uma população muito menor e mais homogênea que a nossa, já sequenciou cerca de 500 mil. E pretende passar para uma fase de 5 milhões de sequenciamentos.

A gen-t já conquistou algum apoio financeiro?

Além dos nossos investidores e de um apoio da FAPESP e da Embrapii, agora que já temos esses 10 mil participantes, estamos conversando com diferentes farmacêuticas e biotechs sobre modelos de parceria para que eles nos ajudem a gerar o sequenciamento completo. A Eurofarma nos apoia por meio do fundo de investimento que eles criaram. Não gostaria de construir toda essa infraestrutura para que a inovação baseada nos nossos dados fosse feita apenas no exterior.

Temos conversado com várias farmacêuticas nacionais para mostrar a elas essa oportunidade. Recentemente, fomos selecionados para o programa de aceleração Scale-Up da Endeavor, o que reforça nossa trajetória de crescimento.

A Eurofarma poderá ter acesso privilegiado aos dados gerados pela gen-t?

Não. Para isso, ela precisaria firmar um contrato conosco como cliente. O Maurizio Billi, presidente da Eurofarma, viu a participação nesse projeto como uma contribuição da empresa para algo importante para o país. Ele sabe que a gen-t é uma empresa que pode vir a se tornar um bom negócio para o fundo da Eurofarma, mas antes de tudo ela é uma iniciativa que vai trazer um crescimento para o país.

O recrutamento dos pacientes pode ser direcionado para uma doença específica, caso uma farmacêutica tenha interesse nela?

Temos discutido isso com alguns potenciais clientes. Estamos montando uma base populacional. Quando chegarmos a 200 mil participantes, teremos um certo número de pessoas com Parkinson, AVC etc. Por encomenda, posso enriquecer o recrutamento para incluir pessoas com doenças específicas. Isso é uma maneira de começarmos a nos engajar comercialmente com os clientes. Além disso, estamos discutindo a possibilidade de capturar fenótipos adicionais, que não fazem parte do nosso protocolo.

O que está sendo mais difícil do que você imaginava?

O mais difícil é achar investidores como os que achamos. Gente da qualidade do Eduardo Mufarej e do Armínio Fraga. Eles têm uma visão de homens de negócios que querem um múltiplo, mas entendem que isso tem que ser consequência de um bem maior que a empresa traz à sociedade. Para eles, na equação que determina se algo é um bom investimento entra o valor social que a empresa agrega ao país. O Maurizio, da Eurofarma, enxergou isso também. Fico decepcionada quando aqueles Faria Limers que poderiam ter sido meus alunos só querem saber do múltiplo.

Há outras dificuldades?

Uma delas é que até mesmo os fundos de venture capital voltados à saúde não têm conhecimento em deep tech. Nos Estados Unidos, esses fundos sabem que estão investindo em uma coisa de alta tecnologia que só vai começar a ter retorno muito lá na frente. Essa experiência não existe no Brasil.

O pessoal quando fala em healthtech está pensando em um aplicativo. Em um negócio que no segundo ano já tenha clientes. Encantar a indústria nacional é outra das minhas dificuldades. Meu sonho seria que a indústria nacional fizesse um consórcio em torno do que estamos fazendo como as internacionais formaram nos Estados Unidos e na Inglaterra.

Grandes multinacionais farmacêuticas demonstraram interesse no banco brasileiro que a gen-t pretende gerar?

Sim, já temos conversas com grandes multinacionais e com outras empresas que já usam dados do UK Biobank e conhecem o valor disso e a limitação imposta pela falta de diversidade. Venho conversando com elas desde que surgiu a ideia. Até para entender se haveria interesse. Elas diziam que sim, mas eu ainda não tinha nada para apresentar. Agora que já temos 10 mil pessoas, começamos a conversar para tentar chegar a algum tipo de contrato.

O recrutamento de voluntários é feito apenas em São Paulo?

Iniciamos o recrutamento principalmente no entorno de São Paulo, com apoio de prefeituras que nos ajudam a divulgar a iniciativa e disponibilizam espaços em UBSs (Unidades Básicas de Saúde). Já realizamos coletas em cidades como Vinhedo, Monte Sião, Engenheiro Coelho, Hortolândia e Itatiba. Além disso, as prefeituras nos fornecem acesso aos prontuários de saúde dos voluntários que consentiram. Mas já estamos expandindo para outras regiões, fazendo coletas nas regiões de Manacapuru (AM), e até o final de 2024 estaremos em Salvador (BA).

Vocês pretendem expandir as coletas para outras regiões?

Temos um mapa da cidade natal dos atuais 10 mil participantes. É muito interessante perceber que são pessoas que vieram do Brasil todo. Nosso desafio em 2024 é coletar também em Salvador, na Bahia, onde chegaremos no mês de outubro, e em outros estados do Nordeste e da região Norte. Sabemos que as ancestralidades não europeias estão enriquecidas nessas regiões. Essa é a população que queremos representar na nossa plataforma.

Para os voluntários, qual é a vantagem de participar do projeto?

Uma proposta de valor muito interessante para os voluntários são as informações de saúde que retornamos a eles. Queremos incluir as classes socioeconômicas C e D, justamente a parcela da população que fica de fora dos grandes avanços da medicina. Por meio de uma plataforma digital, devolvemos a eles os resultados das medidas e dos exames de sangue e cruzamos os dados com as informações dos questionários. Devolvemos um relatório geral de saúde, com luz verde, amarela e vermelha, de acordo com diferentes critérios.

Sim. Na fase de genotipagem, podemos dar uma informação mais geral sobre a ancestralidade da pessoa. Para algumas populações, isso é muito importante. Pessoas com ancestralidade africana, por exemplo, poderão saber de onde vieram. Depois, com o sequenciamento, poderemos começar a devolver a elas informações importantes sobre a saúde, como predisposições genéticas para diferentes doenças.