Trabalho com pesquisas há 15 anos e uma dificuldade da ciência é como mostrar dados que não aparecem em exames bioquímicos e até mesmo em testes controlados. Esses são comportamentos mais qualitativos, baseados em relatos e até mesmo em dados observacionais, que envolvem descobrir e entender um cenário de forma geral, utilizando informações individuais.
Um grande exemplo é o uso de máscaras durante o treino, em que alguns estudos com pessoas saudáveis, em intensidade leve/moderada e ambiente controle, mostram que não modifica a performance. Porém, e os relatos de pessoas obesas ou com excesso de peso, asmáticas, com DPOC (doença pulmonar obstrutiva crônica), com crise de ansiedade (ou mesmo fobias) e hipertensas realizando exercícios moderados/intensos com máscaras não recomendadas?
Essa, sim, é a maior parte da nossa população. Entretanto, na pandemia, entramos em um espaço mais sombrio, onde alguns temas são evitados. Um deles é por que ainda temos que fazer exercícios, inclusive ao ar livre, de máscara, enquanto bares estão liberados —e ninguém bebe ou come petiscos de máscara, certo?
Vamos primeiro a alguns dados atualizados...
No Brasil, já temos quase 60% da população com a vacinação completa. Sabemos que as vacinas disponíveis são eficazes e reduzem significativamente o risco de internações e mortes pela covid-19. Além disso, o número de casos e óbitos pela doença vem caindo.
Trouxe esses fatos para contextualizar algumas indagações e pontuações que farei nesse texto:
Ponto 1. Com a maioria da população vacinada e uma grande parte que já teve contato com a covid-19, as flexibilizações estão acontecendo —algo corre, pois na minha opinião nada mais justo do que voltarmos à normalidade—, os bares/baladas abertos com pessoas sem máscara (justificado por comer e beber). Então, de novo, por que as academias, um dos ambientes com menos contágio (de acordo com o CDC) e um polo promotor de saúde, ficam mais uma vez como um dos últimos lugares em que as flexibilizações ocorrem? Primeiro, os locais de treino foram vistas como não essenciais, até que viraram essenciais, mas agora seguem sendo um dos ambientes mais fiscalizados para uso de máscara...
Ponto 2. Sobre o uso de máscaras nas academias, a própria OMS não recomenda para a prática esportiva, reforçando que o equipamento reduz a nossa capacidade de respirar de forma natural e que o suor pode fazer com que a máscara fique molhada mais rapidamente, o que dificulta a troca de ar e incentiva o crescimento de microrganismos.
Ponto 3. A Sociedade Brasileira de Medicina de Exercício e do Esporte reforça que, com o uso de máscaras, os praticantes precisam se esforçar muito mais para conseguir manter a mesma intensidade do treino, além disso, a concentração de CO2 retido no equipamento pode levar a certas alterações fisiológicas, provocando fadiga mais precocemente.
Por que, então, o uso de máscaras nesse ambiente não pode ser facultativo, como em diversos países que não exigem o uso da máscara durante a prática de exercício (Reino Unido e Noruega, abertas e sem restrições; França, Itália, Alemanha abertas com exigência de comprovante de vacinação; Portugal, Irlanda, Suécia, Espanha abertas e com algumas restrições, como distanciamento)?
Para vocês terem uma ideia, o CDC já mostrou na época de reabertura que os bares e restaurantes ocupam o segundo e quarto lugares, respectivamente, de locais de maior contaminação (sendo os ambientes que as pessoas mais ficam sem máscara por beber e comer, lembrando que as bebidas alcoólicas tiram o estado de plena consciência dos clientes). O CDC também mostrou que as academias ocupam o 15º lugar de local de risco de contaminação.
Já o IHRSA (International Health Racquet and Sportsclub Association) computou que, após a reabertura, as academias foram responsáveis por apenas 0,5% das transmissões do coronavírus ocorridas em San Diego (Califórnia, EUA); na Inglaterra, as academias receberam 8 milhões de visitantes nas primeiras três semanas de agosto e relataram 17 casos de covid-19; e na Austrália, 6 milhões de pessoas frequentaram mais de 400 academias durante 2 meses e não houve caso de transmissão dentro delas.
É necessário reforçar que o ambiente da academia é um ambiente seguro, por diversos motivos, como o hábito de higienização dos equipamentos, controle dos clientes/alunos, o baixo contato entre os praticantes, a conscientização do estado de saúde dos praticantes de exercício e os hábitos saudáveis de estilo de vida que levam a melhora do sistema imunológico e fatores fisiológicos favoráveis —esse fato foi relatado por dados da Universidad Rey Juan Carlos (Madrid, Espanha) e pelo Advanced Wellbeing Research Center (UK).
Além disso, devido ao perfil consciente do usuário, as mais de 40 medidas de biossegurança foram aplicadas e respeitadas com sucesso em todo o Brasil.
Eu reforço esse tema por diversos motivos. Um que é totalmente desagradável treinar com máscara e essa é mais uma barreira para treinar ou mesmo voltar aos treinos. Durante o período de pandemia, fomos aconselhados a ficar em casa e a seguir os regulamentos declarados pelos governos locais e as recomendações da OMS.
Dessa forma, de acordo com dados apresentados pela Agência Fapesp, "nos primeiros meses de confinamento, houve redução de 35% no nível de atividade física e aumento de 28,6% nos comportamentos sedentários, como passar mais tempo sentado e deitado, além de maior ingestão de alimentos não saudáveis."
Sabemos que afastar-se do sedentarismo é essencial para reduzir o risco de doenças como obesidade, diabetes, hipertensão, infarto, AVC, depressão, ansiedade... O exercício, mesmo em baixa intensidade, é importante para manter a massa muscular, a aptidão cardiovascular e prevenir a perda óssea, que é associada pelo comportamento sedentário.
Além disso, uma pesquisa mostrou que o treinamento físico pode reduzir o risco de síndrome do desconforto respiratório agudo (na sigla SRAG) associada à covid-19. A revisão sistemática de Zhan Yan (2020) descobriu que a superóxido dismutase extracelular (enzima antioxidante) associada ao treinamento físico pode ser protetora contra SRAG de covid-19.
De acordo com um estudo da Unesp, a irisina, que é um hormônio lliberado pelos músculos durante o exercício, reduz a produção da proteína responsável pelo transporte do novo coronavírus para dentro das células.
Exercícios de baixa intensidade para indivíduos sedentários e exercícios moderados para indivíduos ativos são recomendados pelo CDC e pelo American College of Sports Medicine (ACSM) para manter a aptidão cardiovascular e musculoesquelética na população global.
As células do nosso corpo precisam de oxigênio —que vem através do fluxo sanguíneo— para viver e realizar seu trabalho adequadamente. Enquanto a hipoxemia se refere a baixos níveis de oxigênio no sangue, a hipoxia se refere a baixos níveis de oxigênio nos tecidos do corpo. Os dois podem, às vezes, ocorrer juntos.
Geralmente, a presença de hipoxemia sugere hipoxia. Isso faz sentido porque, se os níveis de oxigênio estiverem baixos no sangue, os tecidos do corpo provavelmente também não estão recebendo oxigênio suficiente.
Uma análise publicada feita pelo Neuroimmunomodulation (2020), pontua que a imunomodulação induzida pelo exercício em normóxia parece ser dependente da interação da intensidade, duração e frequência do exercício.
Vamos entender agora algumas alterações que podem ser induzidas pelo uso de máscara durante o exercício físico?
De acordo com hipóteses levantadas no artigo de Chandrasekaran et al (2020), pode ocorrer:
A maioria dos estudos com máscaras e exercícios físicos foram realizados em ambiente controlado e com pessoas saudáveis.
Sabemos que o uso de máscara em pessoas saudáveis em intensidade leve a moderada pode ter pouca influência, não interferindo na performance e saúde cardiovascular —reforço que são indivíduos saudáveis. Nos mesmos indivíduos, exercícios moderados/extenuantes/intensos, a máscara sendo uma barreira física faz com que o gás carbônico fique retido, aumentando os batimentos cardíacos, que necessitam de uma maior demanda, porém terá uma baixa quantidade de substratos para essa musculatura cardíaca, podendo levar a uma isquemia ou infarto em pessoas que sofrem de problemas cardiovasculares ou alguma das comorbidades pontuadas acima.
Além disso é necessário ter ciência de qual máscara utilizar na prática esportiva, pois, de acordo com o Clical Research in Cardiology (2020), a máscara N95/PFF2 altera a capacidade cardiopulmonar durante o exercício e não é recomendada sua utilização, reduzindo em até 25% a capacidade respiratória, comprometendo ainda mais indivíduos com comorbidades.
Com a justificativa de que estão comendo e bebendo, por que as pessoas podem tirar as máscaras nas baladas e não podem tirar na academia em um ambiente seguro e que promove a saúde com supervisão?
Em ambientes de academia, os praticantes estão conscientes sobre suas ações e podem escolher se querem ou não utilizar a máscara, mantendo o devido distanciamento. Diferente de ambientes em que ocorre a ingestão de bebidas alcoólicas e que não estão no estado pleno de consciência.
Além disso, é necessário uma maior atenção por parte dos governos locais com relação ao uso de máscaras em academias —principalmente em pessoas com comorbidades. Com a maioria vacinada com apenas uma dose, as academias podem utilizar outras estratégias de segurança e controle, já que é um ambiente em que as pessoas estão conscientes sobre sua saúde, podendo ficar a critério do praticante o uso ou não.
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