Entrevista - Martin Rees
A mais prestigiada academia científica do mundo, a Royal Society britânica, escolheu o Brasil para participar de seu 350º aniversário. Além de eventos no Reino Unido, a sociedade promove dois grandes encontros internacionais. Um deles é o Fronteiras da Ciência, que reúne 78 pesquisadores britânicos, brasileiros e chilenos para debater os limites do conhecimento entre 30 de agosto e 3 de setembro, em Itatiba, no interior de São Paulo. Para o astrofísico Martin Rees, presidente da entidade, a escolha faz jus ao avanço brasileiro nos últimos anos, em especial nas áreas de agricultura e energias limpas. “Qualquer país que deseje se desenvolver precisa criar uma grande comunidade científica”, afirma Rees. Diz que ainda há muito a ser descoberto. “Estamos nos aproximando de questões que nem haviam sido propostas quando eu era estudante.”
ÉPOCA – Os cientistas dizem claramente que estamos rumando para mudanças climáticas perigosas. Mas a opinião pública parece ainda distante dessa percepção. Por que?
Martin Rees - Primeiro, a ciência é complicada. Mas o principal problema é que a ação necessária é de longo prazo. Levaria várias décadas. E precisa ser internacional. Por isso, é mais difícil que o público coloque a luta contra o aquecimento como uma prioridade, à frente de assuntos mais imediatos.
ÉPOCA – Mas também existe um grande número de pessoas que questiona o próprio conhecimento científico sobre o clima.
Rees - A base científica segundo a qual o aumento nas concentrações de gás carbônico na atmosfera está fazendo o planeta esquentar é indiscutível. Quanto pode aquecer e em que velocidade ainda está sendo debatido. Mas não há dúvidas que as emissões humanas estão se sobrepondo a outros fatores complexos que fazem o clima da Terra flutuar.
ÉPOCA – O público está certo em priorizar problemas mais urgentes? Podemos confiar na sabedoria das massas?
Rees - Até certo ponto, sim. Mas se você tem uma doença grave e for consultar sobre ela na internet, vai encontrar todo tipo de opinião. Só que na hora de seguir o tratamento, se você for prudente, confiará mais nas opiniões de médicos especialistas credenciados. No caso do clima, é semelhante. Creio que é mais acertado confiar na opinião dos cientistas que estudam a questão e ouvir seu alerta de que o aquecimento global é, potencialmente, uma ameaça séria. Esse é o momento em que os políticos precisam assumir a liderança, e ir além da percepção das pessoas comuns.
ÉPOCA – Eles estão assumindo esta liderança?
Rees - Precisamos dar crédito ao nosso próprio país, em especial a Tony Blair, que transformou o enfrentamento às mudanças climáticas em uma prioridade nacional. Não podemos esquecer que o desafio é muito grande. Envolve um acordo internacional para reduzir as emissões. Não é de surpreender que o avanço seja lento.
ÉPOCA – Como o senhor vê o ensino do creacionismo (versão que Deus criou o mundo) junto com o evolucionismo nas escolas?
Rees - Não deve haver oposição entre essas duas questões. A ciência da evolução pode coexistir com as principais religiões. As evidências em relação à evolução são fortes o bastante. Não existe mais grande debate em torno da teoria. O que se pesquisa muito são os detalhes.
ÉPOCA – Por que a Royal Society escolheu o Brasil para receber este evento?
Rees - O Brasil é cada vez mais importante no mundo científico. Nos últimos anos, o orçamento para pesquisas dobrou no Brasil e o país desenvolveu várias colaborações importantes com o Reino Unido. Vocês têm liderança em biocombustíveis. Também desenvolvem pesquisa de ponta na área agrícola. É nessas áreas que o Brasil tem mais chance de fazer diferença no mundo. Assim como no desenvolvimento de energias limpas em geral.
ÉPOCA – Como converter essa produção científica crescente em inovação tecnológica na indústria, que renda retorno econômico?
Rees - Nós nos preocupamos com o mesmo desafio no Reino Unido. Precisamos garantir que as ideias que brotam nas universidades rendam o maior benefício para o país. Mas qualquer país que deseja se desenvolver precisa criar uma grande comunidade científica. Não só porque esses pesquisadores farão descobertas, mas porque estão ligados à comunidade científica internacional. Mais de 90% das descobertas vêm de outros países. E vocês precisam de gente nas universidades capaz de identificar os avanços científicos feitos no mundo e trazê-los para o país. Por isso, é importante para o Brasil continuar estimulando o crescimento da atividade científica.
ÉPOCA – Um país em desenvolvimento como o Brasil pode se dar ao luxo de investir em ciência básica, que não tem retorno imediato? Ou deveria se concentrar em tecnologia aplicada à indústria?
Rees - O volume de recursos dedicado a pesquisas básicas em qualquer país é uma fração pequena do total. Acontece que você precisa ter boas universidades e centros de pesquisa para formar pessoas qualificadas. E para reter os cérebros que iriam para outro país. Por isso, é fundamental desenvolver físicos, químicos e matemáticos no país, mesmo que não pesquisem diretamente aplicações industriais. São eles que educarão a próxima geração de especialistas.
ÉPOCA – No campo da cosmologia, que é sua especialidade, ainda existe alguma grande descoberta para ser feita?
Rees - De certa forma, ainda estamos começando. As fronteiras da ciência avançaram muito. Com isso, passamos a enxergar mais longe e novas questões surgiram. Estamos nos aproximando de questões mais fundamentais, que nem haviam sido propostas quando eu era estudante. Ainda não entendemos o que aconteceu no início de tudo. Ou quais eram as condições no chamado Big Bang (quando o universo surgiu). Nem porque o universo contém esse mix de matéria e radiação. Gostaríamos de entender o que levou o universo dessa fase inicial, mais quente, para o Cosmo que hoje vemos ao redor de nós. Como se formaram os primeiros átomos, estrelas, galáxias e planetas. E como a biosfera se constituiu. Temos apenas uma compreensão parcial desses eventos. O Darwinismo consegue explicar como a diversidade de vidas complexas surgiu a partir de alguns organismos mais simples. De forma semelhante, estamos tentando entender como esse Cosmo complexo se desenvolveu. Precisamos contar melhor essa história maravilhosa, desde o início há cerca de 13,5 bilhões de anos.
ÉPOCA – Para contar essa história, os cosmologistas começam a evocar conceitos estranhos, como múltiplos universos paralelos ou um mundo com dezenas de dimensões. Algum dia esbarraremos no limite de nossa capacidade de compreensão? Rees - Sim. Há vários conceitos difíceis de pegar porque não são intuitivos. Mas isso não é exatamento novo. Os princípios da física quântica, dos anos 1920, já eram assim. Porque a matéria, na escala subatômica, se comporta de forma bem diferente do que nos vemos no dia-a-dia. E é uma teoria bem estabelecida, que serve de base para boa parte das tecnologias que usamos hoje. Já é admirável que tenhamos chegado até aqui com um cérebro que foi feito para lidar com o ambiente de nossos ancestrais na África, há 100 mil anos.
ÉPOCA – Algum dia saberemos o que houve antes do Big Bang?
Rees - De certa forma, esta não é a linguagem certa. Porque quanto mais próximos chegamos do evento inicial, os conceitos de espaço e tempo começam a deixar de fazer sentido. Quando o tempo deixa de ser como uma seta, indo de antes para depois, não dá mais para pensar em termos de o que aconteceu primeiro. Mas tenho esperança de que teremos uma noção mais clara de porque nosso universo começou como começou.
ÉPOCA – Se nos momentos iniciais do Big Bang, o tempo deixa de se comportar como uma seta, com antes e depois, ainda faz sentido pensar na causalidade?
Rees - Aí entramos em uma questão filosófica. Queremos uma teoria que seja consistente. Alguma que seja coerente com o universo que temos hoje. O mundo de hoje tem causalidade. Mas ela implica em uma direção do tempo. Talvez seja melhor pensar em termos de pedaços que tiveram que se juntar espacialmente, em vez de uma sucessão de eventos dispostos em uma sequência temporal.
ÉPOCA – A religião não oferece essa consistência para explicar os mistérios do universo?
Rees - Eu vejo religião e ciência como duas atividades bem diferentes. A ciência nos oferece vários mistérios. E precisamos entender que, mesmo que não os entendamos agora, saberemos cada vez mais no futuro. Devemos nos inspirar com esses mistérios e buscar uma compreensão maior do universo a partir deles.
ÉPOCA – O senhor acredita em Deus?
Rees - Acho que não gostaria de responder a esta pergunta.
ÉPOCA – A espécie humana vai sobreviver a este século?
Rees - Seguramente, embora acho que existe o risco sério de passarmos por algum contratempo importante, como uma guerra nuclear. E há claro o risco da pressão cada vez maior que colocamos no meio ambiente. Nos aproximamos de uma população de 9 bilhões de pessoas, com dificuldades para produzir alimento e energia. Sabemos que nossas decisões terão impacto sobre todo o planeta.
ÉPOCA – O físico Stephen Hawking propõe que devemos colonizar outros planetas, por segurança? O senhor concorda?
Rees - É uma sugestão idiota. Não há nenhum lugar no Sistema Solar tão confortável quanto a Antártica ou o Monte Evereste. As viagens espaciais serão uma empreitada apenas para os aventureiros.
ÉPOCA – E os planetas que estão sendo descobertos em outros sistema solares. Estão a milhares de anos luz daqui. Chegaremos lá algum dia?
Rees - Só se você pensar em uma escala de tempo de bilhões de anos. Aí podemos imaginar que a vida conseguirá sair da Terra e alcançar esses planetas. Mas provavelmente não serão humanos. Porque o tempo transcorrido até lá será mais longo do que o que vivemos desde o início do nosso Sol. Em 4 bilhões de anos, a vida mudou de formas com apenas uma célula para organismos como os humanos. Nos próximos bilhões de anos, vai continuar mudando. Se a vida da Terra chegar a outras estrelas, será uma vida além dos humanos. Não há razão para imaginar que os humanos sejam o estágio final da evolução.
ÉPOCA – Nós vamos evoluir? Ou outra forma de vida nos substituirá?
Rees - Acho que os humanos evoluirão. Essa evolução será mais rápida do que no passado, porque contará com a tecnologia e a modificação genética. E não apenas a seleção natural. Além disso, qualquer leitor de ficção-científica sabe que talvez robôs dotados de inteligência humana cheguem às outras estrelas antes de nós. Se você pensar nessa escala maior de tempo, aí a vida não estará limitada à Terra.
ÉPOCA – O senhor acredita que aceitaremos usar modificação genética em humanos?
Rees - Devemos ter cuidado ao usá-la em nós mesmos. Precisamos de regulamentações claras. Mas se alguma comunidade humana for viver fora da Terra, precisarão de alguma reprogramação genética.
ÉPOCA – Que tipo de desenvolvimento tecnológico o senhor ainda gostaria de testemunhar?
Rees - Nos últimos 30 anos, o avanço mais interessante foi o da internet, dos celulares e das telecomunicações. Espero que o ritmo de inovações continue alto nesse campo. É uma área de progresso benigno para a humanidade. Mas eu espero que os benefícios dessa tecnologia sejam compartilhados entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento. Só teremos um mundo pacífico quando isso acontecer.
QUEM É
Cosmologista e astrofísico britânico, é o Astrônomo Real desde 1995 e presidente da Royal Society, a sociedade real de ciências do Reino Unido, desde 2005
O QUE FEZ
Seus mais de 500 artigos científicos ajudaram a explicar aspectos do Universo como a formação das galáxias e a radiação proveniente do Big Bang
O QUE ORGANIZA
Está promovendo o encontro Fronteiras da Ciência, no Brasil