"As dificuldades na área de pesquisa científica são inegáveis, mas eu tive o privilégio de fazer parte de uma equipe valorizada pela instituição onde trabalho", disse o cientista Márcio Silva.
Muitos queriam ter nas mãos a possibilidade de pesquisar e encontrar fórmulas que solucionassem os problemas da humanidade, ou pelo menos parte deles. Quando se pensa em saúde, isso acaba sendo uma vontade ainda mais forte. Como encontrar a cura para o câncer, a vacina para o combate da Aids ou a cura para a doença de Chagas, que já vitimou tantos. Márcio Luís Andrade e Silva insere-se neste grupo de profissionais iluminados: busca a solução para o mal de Chagas, doença descoberta em 1909.
O francano de 37 anos sempre foi um apaixonado pelas transformações, pelos processo mutáveis e por questões dinâmicas, por isso escolheu o curso de Farmácia, feito na Universidade de São Paulo (USP), no campus de Ribeirão Preto, onde ele poderia acompanhar todos esses processos de perto. As ações e reações das experiências químicas foram brincadeiras desde sua infância, quando utilizava os gatos como cobaias das experiências que fazia.
Alimentando a ânsia pelas descobertas, em 1990 Márcio já ingressou no curso de mestrado - farmacologia - na mesma instituição. Após três anos transformou-se em um professor universitário. Em 1994, transferiu-se para a Universidade de Franca (Unifran). No ano seguinte voltaria a ser aluno, iniciando o doutorado - síntese orgânica -, cursado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, novamente em Ribeirão Preto.
Ao unir as duas ciências em um único projeto no final do ano de 1998, e enviando-o para o programa "Jovem Pesquisador em Ciência Emergente" da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado" de São Paulo (Fapesp), o professor, pela primeira vez, apresentava um estudo sobre a cubebina isolada, substância de uma pimenta asiática chamada Piper cubeba. Foi neste projeto que ele conseguiu modificar a estrutura dessa substância e levantar os possíveis efeitos que ela poderia provocar em um paciente chagásico.
Para Márcio, o que move sua vida é buscar algo novo que possa beneficiar a comunidade, por isso o projeto que deu origem ao estudo que está sendo desenvolvido agora.
Foi assim também que Márcio ganhou uma esposa. Na época a estudante de odontologia, Adriana Cristina de Novaes, precisava de alguém que a auxiliasse em um projeto a ser apresentado em um congresso de sua área.
Casaram-se algum tempo depois.
Assim, Márcio dedicou-se sempre à pesquisa científica, sendo o primeiro profissional a introduzi-la na Unifran, utilizando um pequeno laboratório montado para servir os alunos, sendo um pioneiro nesta área.
HELOÍSA AGUIEIRAS - Free lance para o Comércio
Comércio da franca - Sabemos que a área de pesquisa no Brasil é muito difícil, sem subsídios e Incentivos, sem a valorização do profissional. Você nunca sentiu vontade de desistir por causa desses empecilhos?
Márcio Luís Andrade e Silva - As dificuldades existem e são inegáveis, mas eu tive o privilégio de fazer parte de uma equipe valorizada pela instituição onde trabalho. Sempre tive o incentivo de ter toda a infra-estrutura de que preciso, tanto materiais como de verbas. Comecei o trabalho na Unifran em um laboratório que servia apenas para os alunos, hoje há um completamente profissional e tenho me sentido orgulhoso por isso, afinal fui um pioneiro. Fui eu quem começou com o trabalho de pesquisa na universidade.
Comércio - A pesquisa com a substância retirada da pimenta asiática foi seu primeiro trabalho de vulto que ganhou essa importância?
Márcio Silva - Não. O primeiro trabalho que teve uma certa projeção foi uma pesquisa da qual eu era orientador da Adriana Cristina de Novaes, que hoje é minha esposa. Na época ela era estudante de odontologia e precisava apresentar um projeto em um congresso de sua área e resolveu estudar os poderes antiinflamatórios e analgésicos da planta chamada canelinha. Isso realmente foi comprovado através de nosso trabalho, mas a importância desse projeto -que era bem pequeno - ficou nas esferas do tal congresso.
Comércio - Toda pesquisa parte de substâncias naturais?
Márcio Silva - A maioria dos medicamentos foram gerados a partir de substâncias naturais sim. Para que isso seja aproveitável primeiro a tal substância é isolada da planta e estudada. Como o resultado disso é uma quantidade muito pequena, a indústria farmacêutica, depois de muita pesquisa, acaba por sintetizar a substância, ou seja, copiá-la quimicamente.
Comércio - A fitoterapia, que está evoluindo e ganhando cada vez mais adeptos, é mesmo a base de tudo?
Márcio Silva - Os grandes congressos internacionais têm tratado desse assunto com muita seriedade. O principal aspecto dessa ciência é que ela tem tido uma larga aplicabilidade nos postos públicos de saúde, obviamente com um uso racional. Ele também tem efeitos colaterais e a superdosagem pode trazer malefícios; não pode ser usado indiscriminadamente.
Comércio - Como é o passo-a-passo de uma pesquisa científica?
Márcio Silva - Primeiro é preciso fazer um levantamento bibliográfica a fim de verificar se há algo semelhante sobre a substância que será o objeto de estudo. Por exemplo, com a cubebina, não há nada sobre sua atividade anti-chagásica. O segundo passo é isolar a substância da planta de origem e testá-la isoladamente e junto com o extrato dessa planta. O objetivo disso tudo é melhorar a atividade que ela possui, e isso é conseguido melhorando a sua estrutura, adicionando, por exemplo, componentes que possam ampliar sua capacidade de absorção.
Comércio - É nesse ponto que começam os testes em animais?
Márcio Silva - Neste ponto passa-se a fazer os testes in vitro com sangue animal, depois os testes serão feitos no animal vivo com diversas variações, inclusive de dosagem, para ao final encontrar, pelo menos, dois derivados que podem ser considerados excelentes. Aí, sintetiza-se a substancia para que ela possa ser produzida em maiores quantidades e envia-se para os testes pré-clínicos, primeiramente ainda em laboratórios e, finalmente, os exames clínicos, em seres humanos.
Comércio-Como nasceu a pesquisa com a pimenta asiática Piper cubeba? Como você partiu do pressuposto de que ela poderia ser usada na cura para a doença de Chagas?
Márcio Silva - A idéia de se estudar a cubebina, a substância isolada dessa pimenta, partiu de uma conversa minha com o professor da Faculdade de Farmácia da Universidade de São Paulo (USP), Jairo Bastos. Chegamos à conclusão de que iríamos relacionar a síntese de todas as substâncias extraídas da cubebina. Primeiramente, o professor Jairo importou a semente seca dessa pimenta e isolou a cubebina e começamos a fazer ensaios, sabendo que ela já apresentava alguma atividade anti-chagásica bem modesta. Quando nós modificamos a sua estrutura, alcançamos resultados surpreendentes.
Comércio - Quais foram esses resultados?
Márcio Silva - Por exemplo, o derivado oxidado dessa substância (cujo nome ainda não pode ser revelado por causa do pedido de patente) resultou em 100% de atividade quando o sangue do animal é tratado in vitro, ou seja, fora de seu corpo. Isso também aconteceu com outros derivados da mesma substância cubebina.
Comércio - E como se dá a reação, como ela poderá combater a doença?
Márcio Silva - Nos testes feitos, nós temos uma pequena parte de sangue animal, associada a uma pequena parte da substância. Aí é observado se ela foi ou não capaz de matar o agente transmissor, chamado de tripo-mastigoto, que é a forma em que o parasita fica circulando no sangue. Se o medicamento for eficiente, a quantidade do agente transmissor vai diminuindo no sangue. Para ter uma eficiência satisfatória a substância tem que agir 100%, ou seja, quando não é possível mais enxergar o agente transmissor no sangue.
Comércio - E para essa substância poder ser usada, o que é primeiramente observado, em termos de efeitos colaterais?
Márcio Silva - O mais importante é que a substância não quebre as células do sangue, chamadas de hemácias. Se isso acontecer é porque ela é capaz de causar hemorragias no paciente. Já existe no mundo uma patente do uso de cubebina como protetor hepático, ou seja, que protege o fígado. Outros registros literários mostram que ela é capaz de curar doenças renais. Os derivados também foram estudados e chegou-se à conclusão de que eles não causam malefícios. Obviamente voltaremos a fazer novos ensaios, mas preliminarmente podemos dizer que a cubebina não deve apresentar efeitos colaterais expressivos.
Comércio - Em que ponto estão agora as pesquisas com essa substância? Pode se prever quando começarão as pesquisas com seres humanos?
Márcio Silva - Quando se trabalha com ensaios de substâncias que podem ter fins farmacológicos, o primeiro passo é tentar experimentos com sangue animal in vitro. Depois passa-se a fazer testes em animais vivos -que é a fase em que a nossa experiência está. Testamos alguns derivados e conseguimos manter a sobrevivência do animal, aproximadamente 40 dias a mais do que é o tempo alcançado com a droga que hoje existente no mercado. Assim, é possível concluir que a nossa substância é mais eficiente do que a aquela usualmente utilizada no tratamento contra a Doença de Chagas.
Comércio - Como está a questão da patente?
Márcio Silva - Depois de obter grandes resultados no final do ano passado, enviei o projeto para a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), requisitando a patente. A entidade concedeu a patente e liberou a verba. A minha equipe de pesquisadores fez o depósito ideológico em uma empresa especializada, em São Paulo, com a publicação desse depósito. Neste mês, estou enviando outro relatório para a Fapesp, pedindo o depósito internacional - Japão, Estados Unidos e Comunidade Européia - dessa minha patente.
Comércio - Como você vê a nossa Lei de Patentes, depois daquela modificação que ela sofreu no ano passado, impulsionada pela briga da indústria farmacêutica internacional em relação à produção dos medicamentos que compõem o coquetel para a Aids?
Márcio Silva - Eu achei que a alteração foi muito salutar para proteger as nossas patentes e ainda para conseguirmos outras, essenciais para o desenvolvimento da área de saúde nacional. Ela é muito interessante no ponto de vista de fora para dentro.
"Ainda falta o estudo em animais vivos, depois preciso esperar vencer o sigilo da patente. Só então, os testes pré-clínicos começarão. O medicamento ficará pronto em sete ou dez anos".
Comércio - Nossos medicamentos não têm esse tipo de bloqueio no exterior? Márcio Silva - Não conheço esse tipo de restrição em relação aos nossos produtos. Tanto o setor de pesquisa farmacológica, quanto a indústria brasileira, estão muito evoluídos, não devendo nada para a produção externa. O trabalho da Fapesp, por exemplo, é um dos mais importantes, dando incentivo e patrocínio aos pesquisadores brasileiros, que possuem uma criatividade incrível. A universidade tem hoje seis projetos aprovados pela Fapesp, na área de química, sendo desenvolvidos aqui.
Comércio - Qual é o orçamento dessa pesquisa?
Márcio Silva - O projeto está orçado em R$ 300 mil. Isso para cobrir todos os gastos até a sua conclusão. Noventa por cento disso já foi gasto na compra de equipamentos. A Unifran, nesta parceria, cedeu toda a infra-estrutura. O laboratório daqui não existe nem na USP, por exemplo.
Comércio - Quando tudo deverá ficar pronto?
Márcio Silva - Falta ainda o estudo em animais vivos, depois preciso esperar vencer o sigilo da patente. Só aí, os testes pré-clínicos deverão começar a ser feitos. O medicamento pronto, no mercado, ainda deve demorar de sete a dez anos.
O QUE É A DOENÇA DE CHAGAS?
Descoberta pelo doutor Carlos Chagas, que vivia em Oliveira (MG), a doença ficou conhecida como o mal do pobres, pois sua incidência é muito maior em lugares secos, em construções de pau-a-pique, propícias para a proliferação de seu transmissor o Triatoma infestans (o barbeiro). O médico Carlos Chagas deparou-se com o primeiro caso do mal, em 14 de fevereiro de 1909, quando uma menina de 9 meses, chamada Berenice, foi levada até ele apresentando febre alta, a face e o corpo com edema duro e ligeiro comprometimento do sistema nervoso.
O mal de Chagas é uma doença infecciosa e parasitária provocada pelo protozoário tripanossomos. Ao picar uma pessoa infectada, geralmente à noite e na região da face, o barbeiro torna-se portador dos tripanossomos, que se reproduzem em seu intestino. Ao picar outro indivíduo sadio, o inseto defeca e elimina suas fezes contaminadas. A vitima, ao coçar o local da picada, espalha as fezes do barbeiro sobre o ferimento. Dessa maneira, os parasitas penetram nas células da pele, atingindo a circulação sanguínea. Os tripanossomos instalam-se nos músculos humanos, especialmente no coração. Ao atingir e destruir fibras musculares, provocam insuficiência e arritmia cardíaca, que podem levar à morte. O sistema digestivo também pode ser afetado. Atualmente, segundo o doutor e pesquisador Márcio Luís Andrade e Silva, existem, aproximadamente, 400 mil brasileiros infectados e desenvolvendo a doença e seis milhões de pessoas infectadas, ainda assintomáticas. A sobrevida do chagásico, portador da doença em estágio avançado, depende hoje exclusivamente de transplantes dos possíveis órgãos alterados.
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Comércio da Franca