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Jornal Metrópolis - Baixada e Litoral

Manuscrito do século XVIII sobre o ciclo do ouro no Brasil é publicado em edição bilíngue (1 notícias)

Publicado em 09 de julho de 2024

Em 1759, com a expulsão da Companhia de Jesus de Portugal por ordem de Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1781), futuro marquês de Pombal e secretário de Estado do Império português, os jesuítas se viram obrigados a deixar o Brasil. Um deles, José Basílio da Gama (1741-1795), então um noviço, buscou refúgio em Roma por volta de 1760, onde a ordem religiosa seguia ativa. Nos círculos intelectuais italianos, o rapaz, nascido na atual Tiradentes (MG), costumava ser interrogado sobre a extração do ouro em sua terra natal. Em resposta, compôs um longo poema didático onde afirma expor a “verdade nua e crua” sobre a mineração, da qual teria sido testemunha ocular. “Dentre as riquezas do mundo que são os metais preciosos, o ouro é o mais nobre. É ele que a terra oferece em forma de minério e que a mina de ouro dará depois de extraído com extremo esforço. Agora é meu dever cantá-lo: um trabalho difícil para o poeta, mas uma responsabilidade agradável”, anuncia no início de Brasilienses aurifodinae, sua obra de estreia.

A multidão carregada entoa cânticos rudes segundo a cadência tradicional, alivia o peso e diminui o trabalho com a voz. O andar regula o movimento compassado, com a voz que o lidera. Os cânticos são permanentes e em conjunto ecoam nas minas por muito tempo. A multidão faz a extração dos buracos (que denomina catas altas) e amontoa a terra nos campos. Ergue elevados Olimpos, eleva colunas hercúleas com a carga e com o canto.

Escrito em latim entre 1762 e 1764 e inédito desde então, o poema agora vem à luz como As minas de ouro do Brasil, publicado em edição bilíngue pela Edusp. O texto é considerado um raro testemunho sobre a sociedade e a economia do ouro no Brasil setecentista, por apresentar vastas informações sobre os processos de prospecção, os instrumentos utilizados e a mão de obra escravizada empregada na mineração aurífera.

A descoberta desse “tesouro” literário deve-se a Vania Pinheiro Chaves, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em Portugal. Nos anos 1980, a pesquisadora carioca e especialista na obra de Basílio da Gama localizou na coleção do bibliófilo Rubens Borba de Moraes (1899-1986), em Bragança Paulista (SP), o único manuscrito conhecido do Brasilienses. Na ocasião, Chaves recebeu do colecionador fotografias do poema para publicação. A história do documento é cheia de lacunas, mas acredita-se que tenha chegado ao Brasil por meio de um diplomata brasileiro, Ivan Galvão, que o adquiriu na Itália na década de 1930. Com a morte deste, o Brasilienses passou para a Livraria Kosmos, do Rio de Janeiro, e foi comprado por Moraes nos anos 1960. Pouco antes de morrer, Moraes doou sua coleção ao empresário e bibliófilo José Mindlin (1914-2010) e sua mulher, Guita (1916-2006). Em 2005, por sua vez, o casal entregou o acervo à Universidade de São Paulo (USP), que deu origem à Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM), onde hoje está depositado o manuscrito.

A hipótese de Chaves é que o Brasilienses tenha sido produzido como “carta de apresentação” do poeta para ingressar na Arcádia Romana, então uma das academias literárias mais prestigiadas da Europa. “Basílio da Gama fazia questão de se apresentar como um brasileiro que tinha algo a dizer ao mundo. O Brasilienses é uma obra de valor incontestável, que teve a dupla função de valorizar a maior riqueza do Brasil e informar os europeus sobre uma realidade que desconheciam”, afirma a pesquisadora. O bom estado do manuscrito, com caligrafia caprichada e sem rasuras, sugere que o texto estava preparado para a impressão, o que, por razões desconhecidas, não veio a ocorrer.

A tradução do original, com 1.823 versos em latim, ficou a cargo da classicista portuguesa Alexandra de Brito Mariano, professora da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve, também em Portugal. Para realizar a tarefa, Mariano, que analisou a obra em sua tese de doutorado, defendida em 2005 na mesma instituição, estudou tratados sobre mineração e mergulhou nos campos da história e da geologia. O resultado é uma versão feita em prosa, em um português bastante compreensível ao leitor contemporâneo. “Traduzir o Brasilienses exigiu muita pesquisa, pois o poema traz inúmeros detalhes sobre o processo de mineração, inclusive a subterrânea, que apresentava maiores riscos para os escravizados. Basílio da Gama narra que eles entravam nas minas levando lanternas alimentadas por óleo de baleia”, diz Mariano.

Em meio a descrições de doenças, peças de vestuário e contratos de trabalho firmados entre senhores e escravizados, o autor faz alusões a autores clássicos como Virgílio (70 a.C.-19 a.C.) e cientistas modernos, a exemplo de Nicolau Copérnico (1473-1543) e Isaac Newton (1643-1727), que conhecia de sua formação jesuítica. Ao texto em latim, mescla vocábulos em português e tupi. “O processo de tradução foi muito moroso e complexo. Comecei no doutorado e desde então fiz inúmeras revisões. Mas também houve momentos muito poéticos e bonitos de traduzir, em que o autor compara os veios de ouro com as veias do corpo humano, fazendo aproximações com a área da medicina”, conta a tradutora.

Autor-chave do arcadismo luso-brasileiro, Basílio da Gama é mais conhecido pelo épico O Uraguai (1769), marco da literatura setecentista que foi analisado por estudiosos como Antonio Candido (1918-2017) e Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982). O poema em cinco cantos, que narra a derrota dos jesuítas na Guerra Guaranítica (1753-1756) no sul do Brasil, louva explicitamente o marquês de Pombal. Quando lançou a obra, Gama residia em Portugal e não era mais jesuíta. O poeta mineiro ingressou na ordem religiosa em 1757, no Rio de Janeiro, e, com a expulsão da Companhia de Jesus dos domínios portugueses, foi completar os estudos na Europa por volta de 1760. Entretanto, Gama não conseguiu ser incorporado à ordem em Roma. O motivo é controverso. “Alguns afirmam que isso ocorreu por resistência da própria Companhia de Jesus. Certo é que, na cidade, mesmo sem completar todos os votos, era tratado como abade”, escreve a historiadora Júnia Ferreira Furtado, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no posfácio do livro.

Como prossegue Furtado, a “escrita de uma ‘Ode a dom José I’ [então rei de Portugal], em 1765, indica sua nova disposição de não mais fazer parte da Ordem de Jesus e de se aliar irrestritamente à política pombalina”. Dois anos mais tarde, Gama voltou ao Brasil para criar a filial da Arcádia Romana na antiga Vila Rica, hoje Ouro Preto (MG). Pouco depois, em 1768, foi obrigado a seguir de volta para Portugal com um grupo de egressos da Companhia de Jesus e acabou condenado ao exílio em Angola, mas conseguiu se livrar do degredo. “Consta que o perdão se deve a Maria Amália, filha de Pombal, gratificada por um poema com que Basílio celebrou o seu casamento”, afirma Chaves, da Universidade de Lisboa.

“Basílio da Gama sabia se articular muito bem politicamente”, conta Carlos Versiani dos Anjos, pesquisador independente e doutor em estudos literários pela UFMG. “ O Uraguai foi escrito nesse contexto de aproximação com Pombal, de quem Basílio da Gama se tornou assistente”, acrescenta o pesquisador, que em 2021 publicou artigo na revista Teresa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, em edição que comemorou os 250 anos do poema. De acordo com Furtado, o grande herói da saga é Gomes Freire de Andrade, que havia comandado o exército português na Guerra Guaranítica e apadrinhado Gama na juventude. No texto, o autor “canta a vitória portuguesa na Guerra Guaranítica e exalta a política pombalina, incluindo aí a direcionada contra os jesuítas”, como escreve a historiadora.

Com seus versos decassílabos sem rima, O Uraguai encantou autores como Machado de Assis (1839-1908), que fez um soneto em homenagem a Lindoia, heroína do épico. O autor de Dom Casmurro também pretendia escrever uma biografia do poeta árcade. “Basílio da Gama colecionou admiradores, mas também muitos detratores do ponto de vista moral e ético. Ele foi considerado um traidor pela ordem dos jesuítas por causa de sua aproximação com o marquês de Pombal”, observa Augusto Massi, professor de literatura brasileira na FFLCH-USP. Um deles foi o padre Lourenço Kaulen (1716-1799), autor de um ataque virulento ao poeta, que, segundo Massi, acabou impregnando a visão da crítica. “Em Resposta apologética ao poema intitulado O Uraguay [1786], Kaulen acusou Basílio da Gama de não dominar o latim. Lançou também muitas suspeitas sobre o Brasilienses aurifodinae e sobre como o autor havia conseguido entrar tão jovem na Arcádia Romana, uma instituição muito importante na cultura literária ocidental. Era uma punição ao poeta por ele ter defendido a política do marquês de Pombal”, continua Massi.

Da mesma maneira, o historiador Pedro Calmon (1902-1985), na comemoração do segundo centenário de Basílio da Gama na Academia Brasileira de Letras, em 1941, caracterizou o latim do poeta como sendo o de um “colegial”. Já o crítico literário Wilson Martins (1921-2010), em História da inteligência brasileira (Cultrix, 1976), argumentou que os versos latinos do jovem Basílio da Gama não passavam de “exercícios escolares”. “Certamente essas pessoas não leram Brasilienses, mas apenas reproduziram informações que vinham sendo repetidas sobre o poema. O manuscrito era citado, mas poucos o dominavam porque não se tinha acesso a ele”, conclui Massi. Segundo o pesquisador, a partir de agora, estudos sobre o livro podem vir a modificar o lugar de Basílio da Gama na história literária, que parecia já estabelecido. Sua bibliografia também ganhou novas nuances com a descoberta recente, feita pelo próprio Massi, de alguns documentos de época – como um comentário inédito do poeta, médico e tipógrafo italiano Vincenzo Benini (1713-1764), tecendo elogios aos talentos linguísticos do autor.

Ao iluminar aspectos da vida econômica, política e cultural do Brasil colonial, o Brasilienses pode interessar não apenas a estudiosos da literatura, mas também a historiadores, antropólogos, economistas, linguistas e outros pesquisadores. Entretanto, conforme esclarece Furtado, da UFMG, o Brasilienses ora encontra ressonância nas recentes pesquisas históricas, ora se afasta delas. Ao elencar, por exemplo, os mecanismos disponíveis aos escravizados para alcançar a liberdade, como a formação de um pecúlio financeiro, Basílio da Gama fornece pistas a historiadores que têm investigado por que as alforrias se generalizaram em Minas Gerais no século XVIII. Em outros trechos do poema, porém, o poeta parece distante da realidade, como ao julgar que “a multidão vive contente com o alimento de pouco valor e com o vestuário grosseiro e de algodão”.

Para Chaves, da Universidade de Lisboa, o poema tem diversos elementos capazes de despertar a curiosidade dos pesquisadores contemporâneos, com destaque para a questão da escravatura. “O Brasilienses é uma mina de informação a respeito da condição do negro escravizado no Brasil da época, no qual Basílio da Gama relata o processo violento do comércio de seres humanos. É um poema que vai possibilitar muitos estudos futuros e terá uma importância tão grande quanto a do O Uraguai, defende a pesquisadora.

A reportagem acima foi publicada com o título “ Mina de informação ” na edição impressa nº 341, de julho de 2024.

Livro

MARIANO, A. B (trad. e org.). As minas de ouro do Brasil – Brasilienses aurifodinae. São Paulo: Edusp, 2024.

Revista científica

CHAVES, V. P. et al. (org.). 250 anos de O Uraguay. Teresa, São Paulo, Brasil. v. 1, n. 21, 2021.

Fonte: revistapesquisa.fapesp.br