Ao colonizar a Amazônia, os ancestrais dos povos amazônicos entraram em contato com o tripanossoma, protozoário causador da doença de Chagas
Exposição ao patógeno disparou mecanismos de adaptação que, há mais de sete milênios, acabaram por selecionar um gene que confere resistência à doença.
A América do Sul foi o último continente a ser ocupado pelo ser humano. Por isto mesmo, trata-se de um cenário ideal para investigar de que forma os povos originários podem ter sido afetados pela adaptação aos diversos biomas sul-americanos — ou, mais especificamente, aos patógenos pré-existentes em tais biomas.
Tome o exemplo de uma adaptação que ocorreu na África ao longo de milhares de anos nas regiões infectadas por malária. A anemia falciforme é causada por uma mutação genética que leva à produção de células sanguíneas com formato anormal. Se, por um lado, tal deformação causa anemia aos portadores do gene mutante, por outro lado, a célula anormal dificulta a invasão do parasita da malária. Ou seja, nas regiões africanas infectadas pela malária, ocorreu ao longo de milhares de anos uma seleção natural para a sobrevivência dos indivíduos que nasceram portadores do gene modificado para anemia falciforme.
Sabendo deste exemplo africano, cabe a pergunta: existiria no caldeirão genético dos povos originários sul-americanos algum tipo de adaptação genética similar, provocada pela exposição aos patógenos nativos deste continente?
Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) e da Faculdade de Medicina da USP (FM-USP) Science Advances. O artigo é fruto da pesquisa de doutorado do biólogo Cainã Couto-Silva.
“Como geneticistas de populações, estamos sempre interessados em compreender de que forma acontecem as adaptações do ser humano ao meio ambiente. Neste sentido, a América do Sul é ideal para tais investigações, uma vez que foi o último continente a ser ocupado pelo homem”, diz a geneticista Kelly Nunes, pós-doutoranda no IB-USP.
Os primeiros humanos que invadiram as Américas o fizeram vindos da Ásia no final da era do Gelo, entre 20 mil e 10 mil anos atrás. Como as Américas se estendem no eixo Norte-Sul, as diversas ondas migratórias que cruzaram o continente tiveram necessariamente que cruzar biomas os mais diversos, como a tundra canadense, as florestas temperadas e os desertos norte-americanos, a selva tropical da América Central e, já na América do Sul, os biomas andino e amazônico, por exemplo.
São todas eco-regiões que ocupam latitudes diferentes, com climas diferentes, e flora e fauna bastante diversas. Cada qual ao seu modo, estas eco-regiões ofereceram aos migrantes uma série de oportunidades e desafios para a sua sobrevivência. “Ou melhor, em termos científicos: cada eco-região deve ter exercido algum tipo de pressão adaptativa sobre os humanos que nela se fixaram”, explica Kelly.
“Seria possível determinar quais teriam sido estas pressões adaptativas olhando o genoma dos povos originários amazônicos? Existe alguma assinatura genômica que possa indicar uma adaptação ao ambiente de floresta? Mais especificamente, caso a pressão adaptativa fosse causada pela infecção de patógenos endêmicos na Amazônia, de que tipo seria a respectiva assinatura de seleção natural?”, indaga Kelly.
TRIPANOSSOMAS DE 9.000 ANOS
A investigação de possíveis assinaturas genômicas adaptativas ao ambiente de floresta no genoma dos povos amazônicos começou sem um objetivo determinado. Os pesquisadores não faziam ideia de qual assinatura poderiam detectar. Mas havia alguns suspeitos: a tuberculose e a doença de Chagas. Sabe-se que ambas as doenças estavam presentes nas Américas muito antes da chegada dos europeus, em 1492.
No caso específico de Chagas, a doença é causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi e é geralmente transmitida pela picada de insetos barbeiros. De acordo com evidências arqueológicas, o registro mais antigo de tripanossoma na América do Sul foi detectado em múmias peruanas e chilenas de 9.000 anos. No Brasil, o tripanossoma também foi encontrado em esqueletos de 7.000 anos.
Será que a exposição dos primeiros indígenas ao tripanossoma teria legado algum tipo de assinatura genômica identificável?
O trabalho de investigação foi suficientemente complicado para ser resumido em umas poucas linhas. Basta dizer que os pesquisadores investigaram 118 amostras de sangue de 19 povos originários amazônicos, como os Karitiana e os Suruí de Rondônia, os Asurini do Xingu e os Xavantes de Mato Grosso. Os resultados foram comparados com aqueles obtidos com amostras de sangue de 35 indígenas mexicanos que vivem em áreas onde o tripanossoma é endêmico, e amostras de sangue de 231 nativos da Ásia — o continente originário das migrações humanas para as Américas.
Como resultado destas análises, os pesquisadores conseguiram identificar uma assinatura genômica relacionada à adaptação à doença de Chagas, associada ao gene PPP3CA (de Protein Phosphatase 3 Catalytic Subunit Alpha).
“A assinatura de seleção mais forte encontrada nas populações da Amazônia estava em torno da região do gene PPP3CA”, diz Tábita Hünemeier, chefe do Laboratório de Genômica Populacional Humana do IB-USP. “Estimamos que a seleção natural do gene PPP3CA tenha começado há cerca de 7.500 anos”. Esse resultado sugere que a seleção começou a atuar nesse gene após a divisão entre as populações da Amazônia, a Costa do Pacífico e Andes
Uma vez identificado o gene PPP3CA como possível assinatura da adaptação dos antigos habitantes amazônicos à doença de Chagas, os pesquisadores testaram esta hipótese in vitro, realizando um estudo funcional do gene PPP3CA em células humanas do músculo cardíaco infectadas com T. cruzi. E por que células do músculo cardíaco? Porque a forma mais perigosa de Chagas, que afeta 30% dos infectados, é uma cardiopatia, ou seja, uma infecção do coração dos doentes.
Algumas das células cardíacas estudadas tinham variantes normais de PPP3CA, enquanto outras foram modificadas para reduzir a expressão do gene. Foi assim que os pesquisadores descobriram que, em média, 25% menos parasitas infectaram as células com expressão reduzida do gene, sugerindo que o gene desempenha algum papel na capacidade do parasita de entrar na célula.
De acordo com Tábita Hünemeier, “nossos resultados fornecem informações sobre a adaptação da população à floresta amazônica. Combinando dados epidemiológicos e análises genômicas, mostramos que uma variante do gene PPP3CA provavelmente tem efeito protetor no resultado da infecção da doença de Chagas”.
Apesar de ser endêmica no Brasil, a doença de Chagas é rara na Amazônia, muito embora os barbeiros serem comumente encontrados na região. “Isso sugere que essas variantes genéticas provavelmente evoluíram para proteger as populações amazônicas contra a doença de Chagas”, pondera Hünemeier.
Ainda não se sabe de que forma o gene PPP3CA confere relativa resistência à doença. Isto é matéria para futuros estudos. Mas o que já se sabe é que este trabalho de cientistas brasileiro é o primeiro a demonstrar de forma inequívoca que a adaptação humana à floresta Amazônica deixou seus resquícios no DNA dos povos amazônicos.
“Esse trabalho é muito importante”, diz a indígena Putira Sacuena, bioantropóloga da Universidade Federal do Pará, à revista Science (Sacuena não participou do estudo). “É a primeira evidência de seleção natural devido a um patógeno nas Américas”.
As descobertas do estudo podem ajudar os cientistas a desenvolver novas terapias para a doença que infecta 6 milhões de pessoas na América Latina.