Conduzido por cientistas de sete países, entre eles o Brasil, levantamento analisou a distribuição e o formato das galáxias — e pode dar pistas sobre energia e matéria escuras
O céu noturno fascina a humanidade há milênios. Mas, enquanto para a maioria das pessoas a escuridão pincelada por estrelas desperta algum encantamento, para físicos de partículas e astrofísicos ela esconde alguns dos maiores mistérios do Universo: como evoluiu? Do que é feita? E como tudo isso é distribuído? Apesar de não termos sido contemporâneos a gênios como Albert Einstein e Galileu Galilei, vivemos na era de máquinas que, finalmente, permitem à ciência chegar cada vez mais perto de responder a essas (e muitas outras) perguntas.
É o que tem buscado o Dark Energy Survey (DES), estudo que contou com a colaboração de cientistas de sete países, entre eles o Brasil. Divulgado em maio, o levantamento analisou três dos seis anos de dados coletados pelo telescópio Blanco, no Chile. O resultado foi o maior mapa já criado da distribuição e dos formatos de galáxias, o que promete contribuir para ampliar o entendimento sobre o que compõe o cosmos — algo que intriga estudiosos há muito tempo.
Mesmo sem nem saber da existência das galáxias, em 1917 Einstein desconfiou que havia algum tipo de matéria e energia “invisíveis”. Hoje, o cálculo de fenômenos astrofísicos, como variações de cor, formato e posições das galáxias, permite aos cientistas inferir que ambas existem. Mas falta ainda definir suas composições e distribuição. E, como o nome sugere, foi isso que o Dark Energy Survey se propôs a fazer — na tradução em português, o nome do projeto significa “levantamento da energia escura”.
Desde o fim dos anos 1980, novos satélites permitiram estudar a chamada radiação cósmica de fundo, que é o “calorzinho” que sobrou do Big Bang e que permitiu a cientistas precisar a idade do Universo: 13,7 bilhões de anos. A partir dos anos 2000, a ideia de que existe uma “matéria escura” (um tipo de matéria que não interage com a luz e é, portanto, invisível) e uma “energia escura” (alguma força que acelera a expansão do cosmos) também passou a ser amplamente aceita pela comunidade científica. Atualmente, sabe-se que somente 5% do Universo é composto de matéria tal qual conhecemos, isto é, os elementos da tabela periódica.
Todo esse conhecimento foi possibilitado graças ao modelo cosmológico chamado “padrão”, uma estrutura matemática que descreve a história do Universo. Ele começou a ser desenvolvido com a nova teoria da gravidade, quando Albert Einstein aplicou sua Teoria da Relatividade Geral para tentar explicar o cosmos. Evidentemente, muito mudou desde então. “A evolução de um modelo não é algo que acontece de repente, é uma descoberta incremental. Aquele era outro modelo, não estava completamente errado e poderia serconsiderado uma espécie de espinha dorsal”, avalia o físico Rogério Rosenfeld, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e um dos brasileiros na equipe por trás do DES.
Usando fotos tiradas pelo telescópio no Chile, os pesquisadores fizeram cálculos e análises para testar o modelo cosmológico padrão e entender melhor os comportamentos da matéria e energia escuras. “O DES foi o primeiro experimento em que as medidas de alguns parâmetros foram tão precisas quanto as da radiação cósmica de fundo”, destaca Rosenfeld.
Ao comparar os resultados do levantamento com as medições da radiação cósmica de fundo colhidas pelo satélite Planck, operado entre 2009 e 2013 pela Agência Espacial Europeia (ESA), os cientistas conseguiram confirmar a consistência do modelo cosmológico padrão. Quase como uma receita, ele prevê que, além dos 5% de matéria, o Universo é composto por 70% de energia escura e 25% de matéria escura. Se as observações do DES não correspondessem a isso, significaria que ainda há algo desconhecido. “O modelo cosmológico padrão descreve bem e consegue mostrar que observações do início do Universo condizem com o que vemos hoje”, resume a astrofísica Andresa Campos, estudante de doutorado na Universidade Carnegie Mellon, nos Estados Unidos.
Entretanto, isso está longe de significar que a natureza da matéria e da energia escuras foi desvendada. “Em um sentido, alcançamos o objetivo de ter mais informações e entender melhor qual a fração de matéria escura e energia escura existente no Universo”, comenta o astrofísico Lucas Secco, pesquisador de pós-doutorado na Universidade de Chicago, também nos EUA, que coliderou uma das análises da pesquisa. “Mas o mistério continua sendo um mistério.”
Trabalho em grupo
Em 758 noites entre 2013 e 2019, o telescópio Blanco, no Observatório Interamericano de Cerro Tololo, inspecionou e fotografou quase um oitavo de todo o céu com uma das câmeras digitais mais poderosas do mundo, criando um catálogo com centenas de milhões de objetos celestes. No total, os resultados das análises dos primeiros três anos se baseiam na observação de 226 milhões de galáxias que ficam a cerca de 7 bilhões de anos-luz da Terra.
"Alcançamos o objetivo de ter mais informações e entender melhor qual a fração de matéria e energia escuras no Universo" Lucas Secco, astrofísico e pesquisador de pós-doutorado na Universidade de Chicago
Para lidar com tamanha quantidade de dados, 400 cientistas de sete países formaram uma colaboração. Foi como um grande trabalho em grupo: os dados chegavam crus e alguns pesquisadores os “limpavam” antes de passarem para o próximo grupo, responsável por medir a posição e os formatos das galáxias para compor um catálogo. Eles então o transmitiam a uma equipe que calculava as estatísticas em cima do catálogo, até que, finalmente, uma última turma usava teorias cosmológicas para associar os parâmetros que melhor representavam os dados encontrados.
O Brasil entrou pouco depois do início do levantamento, com apoio financeiro do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do e-Universo, além de FINEP, CNPq, FAPERJ e FAPESP. Em troca, o país recebeu vagas ilimitadas para estudantes de graduação e pós-graduação e algumas para professores selecionados. “Este foi e ainda é o experimento com a maior área de observações e que coloca o Brasil ao lado de instituições de ponta e cientistas que estão na fronteira do conhecimento”, comemora Rosenfeld. “Para os estudantes, é também uma oportunidade de estarem imersos em um ambiente internacional e de entrarem em contato com os melhores cosmólogos do mundo.”
Legado sem fim
E não são apenas os pesquisadores que saem ganhando: estudos desse porte contribuem para o avanço científico como um todo. Um dos maiores legados do DES, por exemplo, foram os instrumentos construídos para olhar o espaço. A lente da câmera usada tem quase 1 metro de diâmetro e tira fotos com 570 megapixels (MP) — para ter ideia, a câmera do iPhone 12, um dos smartphones mais modernos da atualidade, tem 12 MP.
"Este é o experimento com a maior área de observações e que coloca o Brasil ao lado de instituições e cientistas de ponta" Rogério Rosenfeld, físico e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp)
As inovações são críticas para a próxima geração de experimentos cosmológicos, sejam eles baseados no espaço ou feitos em telescópios terrestres, alguns dos quais devem começar em breve. É o caso do Legacy Survey of Space and Time, um levantamento sobre galáxias semelhante ao DES que tem previsão de início para 2022. Ele será realizado no Observatório Vera Rubin, no Chile, cujo telescópio terá um espelho de 8,4 metros de diâmetro e câmera de 3200 MP. Ao longo de dez anos, o objetivo é obter a imagem mais detalhada do Universo, abrangendo 37 bilhões de estrelas e galáxias.
Não raro, as novas tecnologias também extrapolam o ambiente acadêmico, a exemplo das câmeras digitais com sensores CCD (sigla para charge-coupled device). Fruto da astronomia, esses sistemas de circuito elétrico detectam a luz e permitem que equipamentos digitais gerem fotos em boa resolução. Mas o maior ganho para a humanidade é até um pouco poético. “Entender essas perguntas melhora nossa interação e conexão com o universo ao nosso redor”, analisa Secco. “Toda matéria do Universo é formada em estrelas. A gente realmente é poeira estelar, e esse é um aspecto muito bonito da física e da matemática.”
Embora bem-sucedido, o DES está longe de terminar — na verdade, a equipe está agora preparada para analisar o conjunto completo dos dados. Além dele, novos experimentos devem continuar a testar o modelo cosmológico padrão, sempre explorando aquelas mesmas perguntas que intrigam os cientistas de ontem, de hoje e, certamente, de amanhã.